Autores
França, F.A. (UFG) ; Benite, C.R.M. (UFG) ; Oliveira, M.S.G. (UFG) ; Cândido, A.C. (UFG) ; Vargas, G.N. (UFG)
Resumo
No ensino de Química, a visão é o sentido mais explorado na realização de experimentos e na compreensão das simbologias e nessa investigação, defendemos o uso de Tecnologia Assistiva como ferramenta da ação mediada em experimentos para discussão do conceito de densidade considerando os sentidos remanescentes. A tecnologia tem sido bastante utilizada na nossa sociedade por todos os indivíduos, mas para as pessoas com deficiência pode possibilitar a realização de atividades antes não realizáveis. Nesse sentido, nossos resultados apontam que o uso de tecnologia assistiva em aulas experimentais para DV pode contribuir na aquisição de informações explorando sentidos que não sejam a visão e corroborando com o rompimento da barreira de ter que enxergar para aprender.
Palavras chaves
Tecnologia assistiva; AEE; Experimentação
Introdução
Historicamente, a educação especial foi organizada como sistema de ensino substitutivo ao ensino regular no qual escolas de ensino especial atendiam apenas uma especificidade. A partir de 1961, a legislação brasileira sugere que os alunos com deficiência passem a frequentar a rede regular de ensino, mas somente no final do século XX, após a declaração de Salamanca (1994) e a Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional – LDB (Brasil, 1996), essa modalidade de ensino foi reconfigurada e as matrículas dos alunos com deficiência nas escolas regulares aumentou gradativamente. Os alunos com NEE passaram a deixar as escolas de ensino especial e migraram para as escolas regulares de ensino na tentativa de incluí-los e a Educação Especial passou a ser a modalidade de educação escolar oferecida preferencialmente na rede regular de ensino. Segundo Sá et al (2010), o Atendimento Educacional Especializado (AEE) é um serviço da educação especial, criado com o objetivo de oferecer condições que possibilitem o acesso aos conteúdos escolares e ao conhecimento em geral para os alunos com deficiência física, sensorial e intelectual. O AEE é uma modalidade da educação inclusiva que é ofertado em instituições de apoio ou em salas de recursos multifuncionais na escola regular no contra turno das aulas. O objetivo ao AEE é elaborar e realizar aulas específicas destinadas à alunos com NEE utilizando recursos pedagógicos e promovendo a acessibilidade destes alunos buscando condições de igualdade no processo ensino aprendizagem. (BRASIL, 1996) As aulas de apoio são importantes para sistematizar o conteúdo abordado nas aulas regulares considerando as especificidades da deficiência do aluno utilizando recursos que contribuam no processo de ensino e aprendizagem e visam auxiliar na igualdade de condições para que o aluno permaneça na escola, visto que pode auxiliar na compreensão dos conteúdos possibilitando que o aluno deficiente acompanhe os demais alunos na sala de aula regular. As instituições de apoio oferecem além de aulas, atendimentos psicológicos e médicos a fim de auxiliar no desenvolvimento destes indivíduos para uma melhor inserção na sociedade e é específica atendendo apenas um tipo de deficiência. A DEFICIÊNCIA VISUAL E A EXPERIMENTAÇÃO NO ENSINO DE QUÍMICA: O USO DE TECNOLOGIA ASSISTIVA Entende-se por DV aqueles indivíduos que possuem alguma limitação na visão que atrapalhe o processo de coleta de informações do mundo externo por meio deste sentido (NUNES, LOMÔNACO, 2010), podendo variar de baixa visão à cegueira. Baixa visão pode ser definida por: “A baixa visão consiste em uma grave perda visual que não pode ser sanada pelo uso de óculos convencionais. Caracteriza-se pela diminuição da acuidade visual ou do campo visual para perceber detalhes, desenhos ou objetos com um pouco contraste e a longa distância. ” (Sá et al, 2010. Pg. 20) Pessoas que tem baixa visão tem dificuldade de enxergar objetos próximos e distantes, já a cegueira provoca a incapacidade de perceber cor, tamanho, distância, forma, posição ou movimento em um campo mais ou menos abrangente (Sá et al, 2007). No ensino de Química, a visão é o sentido mais explorado na realização de experimentos e o uso de tecnologia assistiva (TA) pode contribuir na aquisição de informações nas aulas. A TA é, segundo o Comitê de Ajudas técnicas: “(...) uma área do conhecimento, de característica interdisciplinar, que engloba produtos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e serviços que objetivam promover a funcionalidade, relacionada à atividade e participação, de pessoas com deficiência, incapacidades ou mobilidade reduzida, visando sua autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão” (BRASIL, 2009). O objetivo da implementação de TA no Brasil é promover às pessoas deficientes as mesmas oportunidades e dar-lhes as mesmas capacidades de uma pessoa sem qualquer tipo de empecilho físico. A promoção de direitos iguais, mesmas chances e qualidade de vida promovem os Direitos Humanos (BRASIL, 2009). O ensino de química se utiliza de várias representações imagéticas para auxiliar o aluno a entender como funciona seus mecanismos, seus processos. Seja por desenhar modelos de estruturas moleculares, trabalhar experimentos com variação de cor, aferir volumes, mudanças de fase, etc. Para um aluno DV, a problemática se dá a partir do momento que se usa a visão como meio de coleta de dados (BENITE et al., 2015), principalmente em aulas experimentais. Nosso objetivo nesse trabalho é revelar como o uso de ferramentas culturais pensadas para a inclusão podem contribuir para a aprendizagem de alunos DV quando utilizadas em ambientes sociais especializados. Nessa investigação, apresentamos o estudo de uma aula sobre densidade a partir de experimento realizado com o recurso da TA envolvendo alunos com DV em uma escola de apoio ao DV situada em Goiânia, Goiás.
Material e métodos
Essa investigação se encontra nos moldes da pesquisa-ação por nascer de uma necessidade da prática docente, como discutir o conceito de densidade com alunos DV possibilitando sua participação nos experimentos? No panorama da pesquisa-ação o pesquisador se empenha politicamente com o desenvolvimento dos sujeitos na qual o estudo se instaura visando a compreensão da percepção dos mesmos acerca da realidade vivenciada. Configurando-se como uma pesquisa colaborativa, a pesquisa conta com a participação de um professor formador, uma aluna de pós graduação e alunos em formação inicial na qual os professores em formação inicial e continuada são sujeitos da realidade em estudo e trabalham com a necessidade de modificar uma realidade social ao auxiliar os alunos DV na participação das aulas reduzindo suas limitações através de tecnologias assistivas nas aulas de química experimental e teórica estimulando a autonomia e visando o aprimoramento do processo de ensino e aprendizagem na vida destes sujeitos. Segundo Thiollent (1992), a pesquisa deve ser centrada diretamente numa situação ou problema coletivo no qual os participantes estão envolvidos de modo participativo. A resolução deste “problema” deve ser de responsabilidade do pesquisador em conjunto com os outros indivíduos envolvidos na prática e não se deve parar a pesquisa sem concluir os ciclos espirais. A pesquisa por nós desenvolvida, o pesquisador é professor e pesquisador da prática desenvolvida, ou seja, é um membro da pesquisa que estuda e busca viver a realidade estudada. Desta forma podemos categorizar nossa pesquisa como pesquisa ação visto que há o intuito de promover mudanças efetivas na situação investigada a partir de uma sistematização do problema por parte do grupo envolvido. A pesquisa se caracteriza em ciclos-espirais de 4 etapas: 1) planejamento das aulas considerando as especificidades dos alunos e construção de materiais necessários para aplicação das aulas; 2) ação e observação (aulas gravadas em áudio e vídeo); 3) reflexão sobre a ação (análise teórica das transcrições das gravações e discussão sobre as mesmas); 4) rever o planejamento das aulas de forma que às necessidades dos sujeitos da pesquisa sejam melhor atendidas a cada novo ciclo espiral. O estudo foi desenvolvido no Centro Brasileiro de Reabilitação e Apoio ao Deficiente Visual (CEBRAV), Goiás – Brasil, os alunos são matriculados na rede regular de ensino e atendidos no CEBRAV no contraturno através de aulas de apoio. As aulas de química acontecem semanalmente no CEBRAV são iniciadas com experimentos, sendo realizadas por professores em formação continuada (PFC) e inicial (PFI) e acompanhadas por uma professora de apoio (PA) da instituição. Gravadas em áudio e vídeo. As transcrições e análises das aulas são feitas em conjunto por PFI, PFC e PF uma vez por semana. Dessa forma os PFI e PFC além buscam na prática do AEE elementos para uma formação docente numa perspectiva inclusiva.
Resultado e discussão
Aulas experimentais no ensino de química são importantes para a compreensão dos conceitos químicos independente de qualquer especificidade do aluno. A experimentação requer que o aluno seja sujeito da ação, de forma que durante a realização dos experimentos, ele se torne mais ativo do que passivo e com isso, segundo Hodson (1988), os alunos possam aprender de forma mais efetiva. Para alunos DV, as aulas experimentais, quando não consideradas outras formas de coleta de dados a não ser a visão, podem se tornar obstáculos durante a aprendizagem. Pois, apesar de a química ser uma ciência de caráter visual que realiza atividades como: aferir medidas, preparar soluções, observar mudanças de cores, dentre outras, não significa que deve ser o único sentido a ser utilizado para este fim. Ao preparar as aulas de apoio para os alunos DV, foi considerado, o tato como um dos meios de coleta de dados, como descrito no extrato a seguir.
EXTRATO 1
PFC: Em nosso experimento, vamos inicialmente colocar um ovo num recipiente com água para vermos o que acontece. Vamos lá! Cada um tem na frente um béquer com água e um ovo?
Todos: Sim.
PFC: Vocês lembram o valor da densidade da água que falamos na aula passada?
A1: 0,999
PFC: Isso, aproximadamente, 1 grama por mL. Vamos para o experimento!
PFI1: Coloquem o ovo dentro do béquer com água. O que aconteceu?
A2: O ovo afundou.
PFI1: Por que ele afundou?
A3: Por causa da densidade?
PFC: Isso mesmo, por causa da densidade: substâncias mais densas afundam e menos densas boiam. Então, quem é mais denso: o ovo ou a água?
Todos: O ovo.
Através do tato, os alunos puderam perceber que ao colocar o ovo dentro do béquer com água o ovo afundou. Essa forma de aquisição de dados nos experimentos é válida, pois o tato constitui um sistema sensorial que possui características que permite identificar diferentes propriedades dos materiais, tais como temperatura, textura, forma e relações espaciais. Essas informações tem caráter sequencial e funciona a curta distância, correspondendo ao alcance da mão (Batista, 2005).
Como os materiais são manuseados pelos próprios DV, considerar o tato como meio de aquisição de informações durante o planejamento é importante, visto que ao fim do experimento a análise dos dados contribuiu na compreensão do conceito discutido da mesma forma que um vidente compreenderia, a adaptação foi apenas no modo de obter as informações fornecidas pelo experimento. Segundo Nunes e Lomônaco (2010), “o uso dos sentidos pelo cego não é uma mera compensação do órgão falho, mas envolve uma reorganização biopsicossocial, que permite o acesso e o processamento de informações”.
O experimento, quando consideradas as especificidades, pode ser realizado pelos DV de forma autônoma estimulando assim a autoconfiança promovendo a aprendizagem de conceitos que auxiliam na compreensão da natureza do conhecimento científico através da investigação (Benite e Benite, 2009). Quando A3 responde que o ovo afundou por causa da densidade, subentende-se que a densidade do ovo é maior do que a da água. Este fato se confirma quando todos os alunos presentes na aula respondem que o ovo é mais denso do que a água.
EXTRATO 2
PFC: A densidade de uma substância pode ser alterada? O que vocês acham?
A5: Pode.
A3: Não.
PFC: Não pode, porque é uma propriedade específica. Cada substância tem sua densidade. E numa solução, será que pode?
A4: Não sei...
PFC: Vamos para o próximo experimento!
A densidade é uma propriedade intensiva, por isso não varia de acordo com a quantidade de substância presente no sistema. Ou seja, não pode ser alterada quando as condições externas forem as mesmas (Saldanha, Subramanian, 1993). Não se discutiu influência de temperatura e pressão na densidade das substâncias, pois não era o objetivo previsto para a atividade experimental realizada.
Quando ao uso dos instrumentos de mediação, a tecnologia assistiva é um conceito em processo de construção, mas remete a qualquer material que possa servir de recurso para auxiliar na aprendizagem de alunos com necessidades especiais que permite com que eles possam aprender da mesma forma que os outros colegas (GALVAO FILHO, 2009). Utilizou-se para a aula experimental de densidade, uma espátula medidora que, em sua totalidade, tem um volume que mede 10 gramas de cloreto de sódio (previamente testado em uma balança analítica).
EXTRATO 3
PFI2: Na frente de vocês tem um medidor de reagentes sólidos e uma espátula para retirada do excesso de reagente. Vocês lembram quantos gramas de cloreto de sódio cabem nesse medidor?
A3: Eu não lembro!
A1: Acho que 10g.
PFI2: Isso! Ele cabe, aproximadamente, 10g. Vocês vão colocar 30g de cloreto de sódio na água e agitar com o bastão de silicone que está do lado direito.
A5: Já pode pôr?
PFC: Pode! Lembrem: o medidor serve para pegar uma quantidade de soluto sólido e a espátula para retirar o excesso que fica acima do limite superior da espátula.
A2: Então, são três medidores cheios.
O medidor de reagentes sólidos que aparece na fala de PFI2 é um tipo de tecnologia assistiva, pois permite o DV medir, de forma autônoma, a massa necessária para o preparo da solução de cloreto de sódio. Segundo Manzini (2005), os recursos de tecnologia assistiva são materiais muito próximos do nosso dia-a-dia, entretanto, em alguns momentos podem passar quase que despercebidos. (pág 82). E para um vidente, a espátula medidora utilizada, pode ser apenas algo que pega uma quantidade maior de soluto do que uma espátula comum ou até mesmo uma colher, mas para o DV é algo que possibilita a realização de atividades experimentais que antes não poderiam ser realizadas.
Extrato 4
PFI2: Agora a gente vai colocar o ovo no béquer. O que ocorreu?
A1: Ele afundou.
PFI2: Então, vamos colocar mais 30g de cloreto de sódio.
A4: Pronto!
PFI2: E agora? O que aconteceu?
Todos: O ovo boiou!
PFI2: Porque o ovo boiou?
A5: Diminuiu a densidade da água?
A2: Eu acho que aumentou.
PFI2: Isso mesmo, aumentou a densidade do sistema! Porque será?
A2: Por causa da mistura com o cloreto de sódio!
PFI2: Exatamente! O Cloreto de sódio tem densidade maior que a da água, aproximadamente, 2,165g/mL. Quando o colocamos em quantidade na água, formamos uma solução de nova densidade, agora maior que a da água.
Utilizando-se a espátula adaptada na prática experimental os alunos perceberam que ao adicionar três medidas de cloreto de sódio em água, formando uma solução e modificando o caráter do sistema, que antes era uma substância (água) e após adicionar o cloreto de sódio passa a ser uma mistura, os alunos notam que há um aumento na densidade do sistema e A2 ressalta inclusive que este aumento de densidade no sistema ocorre devido à adição do soluto.
A aula inicial teve um caráter qualitativo com o intuito de, através de uma discussão dialética construir o conceito de densidade sem atribuir o uso de fórmulas matemáticas pois, segundo Smith e Cols. (1997), densidade é um conceito que não é facilmente compreendido pelos alunos, visto que o uso de expressões matemáticas e definições de conceitos não corroboram na ressignificação de massa, volume e inclusive a densidade. Com isso, os alunos não conseguem visualizar e corrigir algumas deficiências em suas concepções iniciais, não entendendo de fato o conceito de densidade e podendo posteriormente confundi-lo ou trazendo obstáculos na compreensão do ponto de vista fenomenológico e qualitativo. Acreditamos que, se ensinado o conceito e compreendido pelos alunos a partir de uma abordagem não quantificada, a aplicação destes conhecimentos numa aula quantitativa posterior seria mais significativo.
Conclusões
Observamos nessa investigação que a compreensão do conceito de densidade em aulas experimentais para DV pode ser viabilizada com a abordagem dos aspectos qualitativos e o uso de Tecnologia Assitiva que permita a sensação com os sentidos remanescentes, seguindo medidas e cálculos num momento posterior ao entendimento conceitual, a partir das observações experimentais. Baseamo-nos nesta linha de pensamento para a elaboração da aula, pois uma vez compreendido o conceito de densidade a partir de uma análise qualitativa e experimental, preparamos os alunos para o estudo posterior das expressões e cálculos matemáticos que abordam este conceito. O Uso de tecnologia assistiva contribuiu na autonomia dos alunos uma vez que a realização do experimento foi autônoma e individual. Considerar as especificidades dos alunos deficientes potencializando o uso dos sentidos remanescentes é efetivo visto que pelo tato foi possível coletar os mesmos dados que seriam coletados pela visão e após a coleta de informações o processo de ensino e aprendizagem passa a ser igual ao ofertado para os alunos não deficientes.
Agradecimentos
à CAPES, AO CNPQ, AO CEBRAV e À UFG.
Referências
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