Autores

Cunha, P.L.R. (UFC/USP) ; Almondes, R.R.S. (USP) ; Queiroz, S.L. (USP)

Resumo

O objetivo deste trabalho foi analisar a capacidade argumentativa de graduandos de um Curso de Bacharelado em Química, tendo como base a resolução textual apresentada por eles a um estudo de caso interrompido sobre biofilmes poliméricos para a proteção de peras. Na análise do nível de produção argumentativa, considerou-se o total de unidades de análise (UA) dos textos, percebendo-se uma variação de 12 a 23 UA produzidas. A análise do nível de complexidade argumentativa foi feita pela classificação das UA em categorias que expressam, ou não, algum conteúdo argumentativo. De uma forma geral, a premissa básica de um argumento foi atingida em todos os textos, já que os alunos fizeram proposições, apresentaram os fundamentos para essas e agregaram as respectivas garantias aos seus argumentos.

Palavras chaves

Casos interrompidos; Argumentação; Ensino Superior

Introdução

A argumentação está presente em diversas esferas do cotidiano universitário, como por exemplo, na produção de relatórios de laboratório e na elaboração de monografias de conclusão de curso, podendo ser definida como a capacidade de relacionar dados e conclusões, de avaliar enunciados teóricos a luz de dados empíricos ou procedentes de outras fontes (JIMÉNEZ ALEXANDRE E BUSTAMANTE apud SÁ (2005)). Relacionando a argumentação mais especificamente ao ensino de Química, percebe-se a sua potencialidade na promoção do entendimento dos estudantes sobre conceitos científicos, assim como a respeito da própria natureza da ciência, além do desenvolvimento de habilidades como a comunicação em linguagem científica, raciocínio e pensamento crítico (PORTO E QUEIROZ, 2021). Em anos recentes vem ocorrendo um aumento considerável no número de estudos acerca da argumentação, que revela a importância das contribuições que esta pode trazer para a formação universitária. O conjunto de conhecimentos reunidos sobre o assunto justifica a importância do fomento à sua prática no ensino superior (PEZARINI E MACIEL, 2018; SOUZA E QUEIROZ, 2019). Dentre as diversas estratégias que podem ser utilizadas para favorecer a promoção de habilidade de argumentação, o Método do Estudo de Caso aparece como uma alternativa. Os estudos de caso são narrativas nas quais os personagens enfrentam problemas que precisam ser solucionados com o auxílio de estudantes, considerando o contexto descrito na narrativa (QUEIROZ E SOTÉRIO, 2023). Os estudos de casos podem ter vários formatos e um deles é o Estudo de Caso Interrompido (ECI), que se caracteriza pela adição gradativa de informações à narrativa. Segundo HERREID (2005), nesta variação a narrativa é construída com base no conteúdo existente em um artigo original de pesquisa (AOP) ou em outros textos originais de pesquisa (teses, dissertações etc.) de uma determinada área, ou seja, o ECI retrata um problema que foi realmente enfrentado por pesquisadores. Este trabalho tem como objetivo analisar a capacidade argumentativa de graduandos de um Curso de Bacharelado em Química, tendo como base a resolução textual apresentada por eles a um ECI sobre a temática de Química de Polímeros, mais especificamente sobre biofilmes de materiais poliméricos que podem ser usados para a proteção de peras.

Material e métodos

O locus da pesquisa descrita neste trabalho foi a disciplina de Comunicação e Expressão em Linguagem Científica II, ofertada a 31 alunos matriculados no segundo semestre do Curso de Bacharelado em Química do IQSC/USP. A disciplina contou com aulas expositivas ministradas pela professora e com a produção de apresentações orais elaboradas pelos alunos. Em um primeiro momento, foram realizadas atividades individuais e em grupos baseadas em dois AOP previamente escolhidos, que tratavam da temática de Química de Polímeros, mais especificamente os biofilmes de materiais poliméricos para recobrimento de frutas e sementes. Após o estudo dos AOP foram realizadas as atividades com os ECI, dividindo-se os alunos em grupos de quatro ou cinco membros. Foram criados ECI, a partir de pesquisas publicadas em revistas científicas seguindo as recomendações de HERREID (2005) para este tipo de estudo de caso. Um dos casos foi o ECI “As Peras do Senhor Jairo”, elaborado a partir do artigo de JACOBS E COL. (2020), no qual biofilmes de amido de mandioca sem e com a adição de polpa de acerola foram avaliados para o revestimento de peras, visando investigar os efeitos dessa adição na matriz filmogênicas e na proteção da fruta. De uma forma sucinta, o ECI “As Peras do Senhor Jairo” conta a história do Senhor Jairo, produtor de peras, que está preocupado com as perdas com essas frutas, devido aos seus rápidos amadurecimento e escurecimento. Senhor Jairo entra em contato com o pesquisador Dr. Alexandre Silveira, que trabalha na Empresa de Pesquisas EMPEFLE, que decide pesquisar o preparo de biofilmes a partir de amido de mandioca, com a adição de polpa de acerola, para possível recobrimento das frutas com o objetivo de aumentar o tempo de prateleira das peras. O ECI foi constituído de três partes e cada parte continha duas seções: uma seção de narrativa e uma seção de questões, a serem respondidas pelos alunos, a respeito do caso. O ECI foi trabalhado com os alunos em três diferentes grupos e em três aulas sequenciadas. Ao final de todas as partes, os alunos, individualmente, produziram um texto escrito argumentativo sobre a temática do caso, na prova final da disciplina. De posse do conjunto de textos produzidos, foi realizada a seleção do grupo cuja produção textual seria analisado, considerando-se os de autoria dos alunos que assinaram o Temo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) referente à pesquisa e que participaram de todas as atividades de aplicação do ECI. O grupo 3 com três alunos (A, B e C) foi escolhido para a referida análise. A qualidade da argumentação presente nestes textos escritos dos estudantes foi investigada com base em uma adaptação do Quadro Analítico para Discussões Argumentativas em Fóruns On-line, de SOUZA E QUEIROZ (2018), avaliando-se assim, o nível de produção argumentativa e o nível de complexidade argumentativa dos textos.

Resultado e discussão

Para a análise do nível de produção argumentativa, as unidades de análise (UA) foram definidas como trechos dentro dos textos, sendo que as UA poderiam ser frases, parágrafos ou mensagens contendo uma unidade de significado, que apresentassem uma ideia central frente à resposta da questão. Considerando o nível de produção argumentativa, os textos dos alunos do grupo 3 foram analisados e divididos em UA e o resultado da quantificação destas unidades para cada estudante mostrou 12 UA para o aluno A, 20 UA para o aluno B e 23 UA para o aluno C. Comparando-se o aspecto quantitativo das UA, percebe-se uma diferença entre a quantidade de UA dos textos produzidos pelos alunos, variando de 12 a 23. O texto produzido pelo estudante A teve uma quantidade de UA significativamente inferior às UA dos estudantes B e C, que apresentaram valores próximos entre si, sugerindo que no texto de A sejam menores as possibilidades de identificação de componentes argumentativos. A análise do nível de complexidade argumentativa se inicia pela classificação das UA em categorias que expressam ou não algum conteúdo argumentativo. Ao se analisar as UA dos textos produzidos pelos alunos, percebeu-se a necessidade de adaptação do Quadro Analítico de Souza e Queiroz (2018), de tal modo que as categorias e as subcategorias elencadas para análise argumentativa deste trabalho estão apresentadas no Quadro 1. Na referida adaptação, percebeu-se a necessidade de criação de uma nova subcategoria: “Proposição com explicitação de fontes”. Esta foi acrescentada devido ao aparecimento de proposições que explicitavam diretamente as fontes de Figuras e Tabelas que os alunos utilizaram para compor os seus textos. As categorias de SOUZA E QUEIROZ (2018) não utilizadas estão relacionadas com o fato de, neste artigo, os autores trabalharem com mensagens escritas em fóruns, que tinham um caráter de discussão entre os alunos, podendo assim ser verificada a ocorrência de argumentos de contraposição de uma dupla para com outra dupla e também questionamentos. Como os textos escritos analisados neste trabalho constituem-se em respostas a uma prova, a categoria “não argumentativo”, do Quadro de Souza e Queiroz (2018), também não foi encontrada. As categorias foram reunidas em grupos, que receberam o mesmo coeficiente de complexidade argumentativa (CCA) em uma escala que varia de zero a três e apresenta subcategorias e seus respectivos CCA (Quadro 1). A etapa de classificação das UA foi realizada independentemente pelas autoras do presente trabalho, que se reuniam regularmente e compartilhavam as classificações obtidas. Verificadas discordâncias, as proposições foram colaborativamente revisadas até a obtenção de consenso. Após a classificação de cada uma das UA nas categorias do Quadro 1 produziu-se o gráfico apresentado na Figura 1, na qual se considera apenas a quantidade de UA classificadas em cada um dos coeficientes de complexidade argumentativa, independente da categoria ou subcategoria. Na análise da produção textual de todos os alunos (A, B, C) percebe-se que UA com CCA 1, na qual consta a categoria ESCL (Esclarecimento), não apareceram nos textos avaliados. Foi considerado que uma UA era de ESCL quando explicava algum aspecto do que estava sendo colocado na assertiva de proposição. Apesar de não expressar qualquer componente argumentativo, a presença de UA com esse teor é importante para auxiliar no entendimento da ideia argumentativa descrita no texto escrito. Na Figura 1, os picos com a maior concentração de UA se localizaram no CCA 2, no qual constam as categorias Proposição (PRO) e Fundamentação (FUN). Segundo Souza e Queiroz (2018), a categoria FUND reúne as subcategorias vinculadas aos enunciados em que o aluno inclui dados, fatos, evidências etc. que fundamentam a construção de uma proposição ou contraproposição. Segue abaixo um exemplo de uma UA que representa esta categoria: “No estudo, principalmente, foi utilizado a Microscopia Eletrônica de Varredura (MEV) para avaliar a superfície destes biofilmes, cujas características estão expostas na Tabela 1, procedida pelos resultados do MEV (Quadro 1).” (Estudante A) Já a categoria PROP é aquela que reúne as subcategorias vinculadas aos enunciados básicos de um argumento, correspondendo às declarações de posicionamentos efetuadas pelos alunos no formato de proposições. Segue abaixo um exemplo de UA que representa esta categoria: “O F40 se manteve em uma estrutura densa e compacta praticamente sem nenhuma irregularidade.” (Estudante C) Entre as UA do CCA 2, nível de maior ocorrência, prevaleceram as subcategorias proposição sem qualificador (sem e com explicitação de fonte) e fundamento de proposição. Essas subcategorias englobam a maior parte das proposições dos textos produzidos pelos alunos. A subcategoria fundamento de proposição foi representada pelos enunciados em que os alunos incluem qualquer elemento que se configure como o componente Fundamento do Modelo de Toulmin (2001) em uma proposição. A subcategoria proposição sem qualificador abarca enunciados em que os alunos declaram uma proposição sem acompanhamento de qualificador. Segundo Souza e Queiroz (2018), um qualificador demonstra um grau de confiabilidade (ponto forte ou limitação) que se atribui à proposição que se faz. Segundo Toulmim (2022), são exemplos de qualificadores: necessariamente, provavelmente e presumidamente. Apenas no texto do estudante B, foi encontrada UA desta subcategoria, como mostrado no excerto a seguir: “...pelo motivo do FC e F20 terem problemas com grânulos de amido mal dissolvidos, rachaduras, possivelmente sendo o fator de causa outras irregularidades.” (Estudante C) Observa-se em todos os textos foram encontradas UA de proposição com explicitação de fonte. Um exemplo deste tipo de UA está mostrado no excerto do Estudante A, já citado na categoria PROP. Nele o aluno explicita, diretamente, a fonte (“Quadro 1”) que ele utiliza para compor seu texto. A maior concentração de picos no CCA 2 não é surpreendente, uma vez que nesta categoria estão UA nas quais os alunos fazem assertivas sobre dados e fatos trabalhados no Estudo de Caso ou a respeito de posicionamentos efetuados, com base nestes dados. O outro CCA presente nos textos de todos os alunos foi o CCA 3. Nele estão as categorias GARANTIA (GARA) e REFUTAÇÃO (REFU), onde UA de maior complexidade argumentativa foram identificadas. Segundo Souza e Queiroz (2018), a categoria GARA reúne as subcategorias vinculadas aos enunciados utilizados para garantir ou validar a passagem dos fundamentos para as proposições e, mais especificamente, a garantia de proposição, representa os enunciados, cuja confiabilidade está bem estabelecida, introduzidos para validar uma proposição. Segue abaixo um exemplo de uma UA que representa esta categoria: “...pois filmes que deixam a fruta diferente ou altera a beleza característica delas, podem prejudicar na venda das peras.” (Estudante B) A categoria REFU, segundo esses autores, expressa qualquer condição de exceção e restrição a uma proposição. A refutação de proposição é a única subcategoria que compõe esta categoria, representando os enunciados que caracterizam uma limitação ou restrição de uma proposição enunciada. Um exemplo de UA que contempla esta categoria, está mostrada apenas no texto do aluno A: “...pois, apesar de apresentar uma perda de massa intermediária entre os filmes, ...” (Estudante A) O CCA 3 foi principalmente contemplado por UA da subcategoria garantia de proposição, sendo esta apresentada em todos os textos avaliados. Finaliza a categoria GARA, a subcategoria de suportes sem explicitação de fontes. Esta representa os enunciados fornecidos pelos alunos sem explicitação de fontes para respaldar a garantia de uma proposição (Souza e Queiroz, 2018). Observa-se que apenas no texto do estudante C, foi encontrada UA desta subcategoria, como mostrado abaixo: “...como a oxidação, uma causa muito comum do apodrecimento de frutas.” (Estudante C)

Quadro 1

Quadro 1 - Adaptação dos grupos de categorias e subcategorias argumentativas e seus respectivos coeficientes de complexidade argumentativa (CCA)

Figura 1

Figura 1. Distribuição da classificação das UA pelos coeficientes de complexidade argumentativa CCA para o texto argumento sobre o estudo de caso

Conclusões

Nesta pesquisa, a qualidade da argumentação presente nos textos escritos dos estudantes foi investigada com base em adaptação do Quadro Analítico de Souza e Queiroz (2018), que se mostrou adequado para a avaliação do nível de produção argumentativa e nível de complexidade argumentativa para os textos produzidos pelos alunos. Considera-se que a aplicação do ECI favoreceu a promoção de habilidade de argumentação, pois verifica-se que a premissa básica do argumento foi atingida para os estudantes em seus textos. Estes apresentaram os fundamentos das proposições, fizeram suas proposições, na maioria das vezes agregando as respectivas garantias aos seus argumentos.

Agradecimentos

À UFC pela concessão do afastamento da Profa. Pablyana L. R. Cunha, para estágio de pós-doutoramento na USP; À FAPESP (Processo 23/01936-1) pelo auxílio financeiro.

Referências

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JACOBS, V.; SOUZA, F. S., HAMM, J.B. S.; MANCILHA, F. S. Produção e caracterização de biofilmes de amido incorporados com polpa de acerola. Revista Iberoamerica de Polímeros, 21, 3, 107-119, 2020
PEZARINI, A. R.; MACIEL, M. D. As dimensões da argumentação no ensino de ciências em pesquisas de 2007 a 2017: um olhar para a caracterização e para as ferramentas metodológicas para estudar esta temática. Amazônia: Revista de Educação em Ciências e Matemáticas, 14, 32, 61-77, 2018.
PORTO, P. A.; QUEIROZ, S. L. Argumentação no ensino de química: pesquisas nacionais em destaque. Química Nova na Escola, 43, 1, 3, 2021.
QUEIROZ, S. L.; SOTÉRIO, C. Apresentação. In: QUEIROZ, S. L.; SOTÉRIO, C. (Org.) Estudos de caso [recurso eletrônico]: abordagem para o ensino de química - São Carlos, SP: Diagrama Editorial, 2023. p. 12.
SÁ, LUCIANA PASSOS. A argumentação no ensino superior de química: investigando uma atividade fundamentada em estudos de casos. 2005. Dissertação (Mestrado em Química Analítica) - Instituto de Química de São Carlos, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2006. doi:10.11606/D.75.2006.tde-16042007-115621. Acesso em: 2023-05-23.
SOUZA, N. S.; QUEIROZ, S. L. Argumentação colaborativa apoiada por computador no ensino de ciências: uma revisão. Revista Brasileira de Ensino de Ciência e Tecnologia, 12, 3, 131-157, 2019
SOUZA, N.; QUEIROZ, S. Quadro analítico para discussões argumentativas em fóruns on-line: aplicação no ensino de química. Investigações em Ensino de Ciências, 23, 3, 145-170, 2018.
TOULMIN, S. Os usos do argumento. Trad. R. Guarany. 3ª edição - São Paulo: Martins Fontes, 2022.