Autores
Silva, S.S. (UNIFESSPA) ; Lobato, J.C.S. (IFPA) ; Barros, P.S. (UNIFESSPA) ; Silva, C.E. (UNIFESSPA)
Resumo
Este artigo procura demonstrar como o professor pode utilizar-se da cultura e do saber dos alunos para a implementação de conceitos científicos de química acerca da produção da farinha de mandioca. A metodologia foi a pesquisa de caráter teórico do tipo exploratória, acerca da importância dessas práticas nas escolas. Em seguida observou-se a necessidade da criação de uma sequência de aulas que abordassem os conceitos científicos, a partir do conhecimento prévio dos alunos, sobre a temática da produção da farinha. O professor, dessa forma, cria conexões entre esses saberes e os conceitos científicos, o que permite ao aluno participar do processo de ensino e aprendizagem. Dessa forma, observa-se a importância do aluno na participação do processo de ensino aprendizagem.
Palavras chaves
Ensino de Ciências-Químic; Alfabetização Científica; Fabricação de farinha
Introdução
O encontro entre os diferentes tipos de saberes possibilita uma ressignificação das práticas educativas e uma redefinição do papel da escola para além da simples reprodução do que é certo ou errado para as elites dominantes (SILVA, 2010). Dessa forma, os saberes populares possibilitam uma nova metodologia de ensino, visando à aproximação do ensino científico, apresentado na escola, a partir da realidade do cotidiano do aluno. Atualmente, é notório a busca por uma metodologia menos ultrapassada para o ensino de química, que não se baseia apenas na prática da memorização de fórmulas, tabelas e nomes, o qual não possibilita o aluno a desenvolver suas habilidades e competências. A química que tem sido ministrada para o discente se prende a memorização não conseguindo relacionar os conteúdos com seu dia-a-dia. A química é citada pelos alunos como uma das disciplinas mais difíceis de estudar devido seu grau de complexidade e memorização de fórmulas complexas, propriedades e equações químicas (DA SILVA, 2011) O aprendizado da Química exige o comprometimento com a cidadania, com a ética e com a mudança na postura do professor em relação à sua prática e didática, a mesma deve ser voltada para o ensino ligado diretamente ao cotidiano do estudante, abordando a essência de cada aula de maneira simples para encorajar os alunos (Bernardelli, 2004). A proposta da utilização do saber popular sobre a produção da farinha de mandioca para exemplificar o saber científico é de grande relevância para os alunos do norte, principalmente do estado do Pará. Essa perspectiva de relações entre os saberes populares locais e tradicionais e a ciência tem se mostrado muito ativa na literatura internacional em várias áreas do conhecimento: (BAKER; TAYLOR, 1995; BARROS; RAMOS, 1994; COBERN; LOVING, 2001; FRANCISCO, 2004). Tomando por conhecimento que a farinha de mandioca é um produto bastante evidente no estado do Pará, este artigo procura discutir uma proposta para o ensino médio, visto que ela é alimento presente na base alimentar diária da população paraense. A mandioca se destaca por ser um importante produto da agricultura familiar no Estado do Pará, constituindo assim uma atividade de baixo investimento e fácil comercialização (CEREDA; VILPOUX, 2003). O estado do Pará, na condição de maior produtor brasileiro de mandioca, participa com 15% da produção nacional. A produção de farinha de mesa, a principal forma de aproveitamento das raízes, é uma atividade de importância social porque um grande contingente da população rural participa desta produção, além de representar uma contribuição econômica significativa para os municípios paraenses (FONTES et al. 1999). Assim, envolvendo o aluno em sua própria cultura, a fim de que ele busque relacionar seu saber popular com o saber científico, o mesmo passa a ser protagonista do processo de ensino aprendizagem, criando nele o sentimento de liderança e confiança para buscar o conhecimento. Processos de produção da farinha de mandioca O processo de fabricação da farinha é bastante diversificado, dependendo da região a preparação desse material pode variar. No entanto, o mais encontrado é o da região amazônica, o qual tem como etapas a plantação da mandioca, a colheita, o descascamento, a lavagem, a trituração, a prensagem e a torração (CHISTÉ et al. 2007). O processo de plantação da mandioca requer o estudo do solo. Segundo Ferreira et al. (2013) deve-se ter um cuidado com o solo dessa plantação, isso porque solos argilosos ou áreas baixas tendem a acumular água, fazendo com que as raízes apodreçam dificultando a colheita. Após o processo de plantação e colheita das raízes, estas são levadas para igarapés (braço de rio), no qual ficam submersas por 2 ou 3 dias, essa etapa tem por objetivo eliminar as toxinas das raízes (pubar a mandioca). Em seguida, é iniciada a etapa de descascamento, o qual é feito manualmente eliminando as cascas das raízes. O descascamento elimina as fibras presentes nas cascas, as substâncias tânicas, que escurecem a farinha, e parte do ácido cianídrico que se concentra em maior proporção nas entrecascas (CHISTÉ et al. 2007). Através de um ralador (Caititu) a mandioca passa por um processo de trituração. A trituração é feita para que as células das raízes sejam rompidas, liberando os grânulos de amido e permitindo a homogeneização da farinha (CHISTÉ et al. 2007). Depois de triturada, a mandioca passa pelo processo de prensagem, o qual tem por objetivo eliminar o excesso de líquido. Desta prensagem é retirado um líquido amarelado de cheiro forte, altamente tóxico para ingestão humana naquele momento do qual será preparado o tucupi (DURÃES, 2019). Após o esfarelamento/peneiragem, a massa é colocada, em bateladas, no forno para eliminação do excesso de água e gelatinizar parcialmente o amido, por um período aproximado de 20 minutos, com o forneiro mexendo a massa com o auxílio de um rodo de madeira, de cabo longo e liso (Fernandes et al. 2013).
Material e métodos
Os saberes populares trazem consigo os traços da cultura de um povo. Assim muitos são os conhecimentos populares que podem fomentar a descoberta de metodologias para sala de aula. O processo de fabricação da farinha de mandioca, no estado do Pará, é bastante conhecido pela população de forma empírica, logo o presente trabalho busca implementar a relação do conhecimento científico com o conhecimento prévio de cada aluno acerca do tema, para que o aluno busque compreender melhor sua realidade. O tema abordado leva a interdisciplinaridade, sendo as disciplinas da área de conhecimento de ciências naturais as mais evidentes, com enfoque em conteúdos de química. Também se aproxima da Interculturalidade pois movimenta saberes de culturas diferentes (CANDAU, 2012). A proposta foi criada para buscar as conexões entre o saber popular e conhecimento científico, por meio da produção da farinha de mandioca, baseadas na discussão e desenvolvimento dos temas. Na etapa de obtenção do tucupi, por exemplo, é possível estabelecer um diálogo entre os saberes populares e os conhecimentos científicos, apontando relações entre as substâncias tóxicas presentes no tucupi e os processos culturalmente feitos para eliminá-las; bem como, discutir a obtenção de substâncias, a partir de misturas como ocorre com a goma decantada da manipueira.
Resultado e discussão
A partir da proposta onde seriam trabalhados tanto os saberes científicos quanto
os saberes tradicionais (sobre a fabricação da farinha artesanal), na escola,
considerando ainda a interdisciplinaridade e a interculturalidade, foi criado um
cronograma de cada etapa do processo de fabricação da farinha, buscando
relacionar essas etapas com os conhecimentos científicos, para ser trabalhada
dentro da sala de aula como pode ser demonstrado no quadro 1.
O trabalho pode ser desenvolvido em linhas gerais como uma proposta de ensino.
Assim sendo, segundo o dicionário da (BORBA, 2012) Proposta é um substantivo
feminino ligado a sugestão; aquilo que se propõe, que se sugere: como exemplo
podemos citar a proposta de emprego. O que se pretende realizar ou estudar:
proposta política; proposta de tese. Nesse ínterim, essa proposta de ensino se
sustenta na ideia de um saber popular e suas contribuições para a ciência
química.
Devido às características do processo de fabricação da farinha de
mandioca e explorando-se as formas da produção desse alimento apontadas em
vários aportes teóricos, entre eles: (CHISTÉ et al. 2007; Fernandes et al.
2013; DURÃES, 2019). É perceptível que este processo é composto por diversos
meios ou desenvolvimentos químicos, entre eles questões de ácidos e bases,
separação de misturas, grupos orgânicos, elementos químicos, tabela periódica
entre outros. Logo, é possível uma abordagem de variados conhecimentos químicos
que podem ser repassados dentro da sala de aula, reforçando assim, tanto o saber
popular quanto o conhecimento científico. Mostrando aos envolvidos que o
conhecimento científico está mais perto do que imaginam.
Desse modo, espera-se que com essa proposta de ensino, os resultados com
sua futura aplicação, sejam comparados aos resultados mostrados por diversos
autores que se propuseram a aplicar estudos parecidos, trazendo os conhecimentos
populares e científicos, em um diálogo intercultural e interdisciplinar. Entre
os trabalhos próximos a essa proposta estão: 1) Saber popular e o conhecimento
científico: relato de experiência envolvendo a fabricação de sabão caseiro
(SANTOS, NAGASHIMA, 2017); 2) O Saber Popular nas Aulas de Química: Relato de
Experiência Envolvendo a Produção do Vinho de Laranja e sua Interpretação no
Ensino Médio (RESENDE, CASTRO, PINHEIRO, 2010), Entre outros.
A proposta é de grande relevância para ser utilizada no ensino de
Química, visto que dessa forma as atividades de sala de aula possam se tornar
mais interativas, dinâmicas, contextualizadas, onde o aluno terá a oportunidade
de aprimorar os seus conceitos prévios. Quando o professor relaciona os seus
conhecimentos acerca da produção da farinha de mandioca com os conhecimentos
científicos em sala de aula, isto pode motivar os alunos, pois este se percebe
dentro do processo escolar, por dominarem os conhecimentos que estão sendo
veiculados e também por descobrirem que seus saberes são importantes e estão
também na escola. Mesmo que alguns deles não tenham a vivência da fabricação da
farinha, podem realizar pesquisas nos locais onde esse processo ocorre, pois
estas práticas ainda são muito presentes em toda a região do sul e sudeste.
Outro ponto que pode ser destacado são as possibilidades de investigação que o
aluno pode empreender tanto sobre os conhecimentos populares/tradicionais quanto
os saberes científicos, que são comumente veiculados na escola. Essa também pode
ser uma tentativa do alunos ser despertado em sua curiosidade e a partir de
ferramentas que o professor pode oferecer se engajar em pesquisas tanto dos
saberes locais, quanto dos saberes científicos.
A realização de atividades, debates, experimentação no processo de ensino e
aprendizagem contribuem para a compreensão dos conceitos e na formação do
cidadão crítico, passando a entender a construção da ciência e o saber prático,
sem levar em consideração um ensino baseado apenas na memorização de definições
e classificações que não possuem significado para os alunos (BRASIL, 1998).
Ademais, a sequência didática proposta pode ser adaptada pelo docente,
que pode modificá-la de acordo com o ano, no qual ele pretende aplicar o
projeto. A organização de conteúdos dessa forma pode auxiliar o professor a
expandir suas metodologias, inserindo atividades de pesquisas, atividades
lúdicas e outras que podem ser compartilhadas.
No quadro 2 podemos observar um exemplo de sequência didática para trabalhar a
temática aqui discutida. Muitos docentes por terem altas cargas horárias de
aulas, condições inadequadas de trabalhos, salas de aula muito cheias de alunos
e desconfortáveis, acabam se desmotivando na busca por novas metodologias de
ensino que venha a favorecer os anos em que atua.
Sabemos que o professor é muito cobrado em vários aspectos. Do professor se
espera e tem-se expectativas, devendo ele estar sempre em busca, aperfeiçoando-
se tanto teoricamente quanto em sua prática pedagógica, se preparando e
procurando suprir as deficiências da melhor forma que puder (CARMO, 2017). Assim
sendo, essa proposta quando aplicada, mesmo com as modificações que se fizerem
necessárias, poderá ter resultados satisfatórios quanto a sua prática. Dessa
forma, a busca constante por uma alfabetização científica através da
interculturalidade, interdisciplinaridade, contextualização pode levar o
professor a realmente ser um agente transformador de sua comunidade, de seu
lugar, contribuindo verdadeiramente por uma educação de qualidade e não apenas
replicando uma escola tradicional que não beneficia de forma efetiva o educando.
Quadro 1: A relação dos temas de química que podem \r\nser abordados dentro da sala de aula fazendo uso do \r\nsaber popular dos alunos sobre o tema.
Quadro 2: A relação dos temas de química que podem \r\nser abordados em diferentes séries (anos) de ensino \r\nfazendo uso dos saberes locais dos alunos.
Conclusões
As análises feitas nesta investigação permitem inferir que é possível divulgar o conhecimento químico de forma contextualizada por intermédio de meios sociais ou vivências compartilhadas em localidades junto a seus alunos. Assim sendo, várias são as formas de utilização desse saber para fins educacionais. Dentre as formas podemos citar a ida desses alunos ao local onde se realiza todo o processo de fabricação, os quais poderão colocar em prática os saberes científicos adquiridos em sala de aula. Dessa forma o professor pode deixar as aulas expositivas puramente para se engajar em uma proposta que veicula o fazeres e saberes dos alunos, utilizando-se de cada etapa do processo de fabricação de farinha. Dessa forma ele pode envolver vários conhecimentos em cada passo desse processo, bastante conhecido pelos estudantes. Na produção da farinha muitos são os temas científicos que podem ser trabalhados em sala de aula, especificamente no ensino de química. Assuntos como impactos ambientais, consequências climáticas, degradação do solo e a toxicidade de alguns elementos químicos dentre outras relações estabelecidas entre a química e a sociedade, de forma geral. Todos esses pontos podem valorizar a educação científica, cultural e regional fortalecendo assim a identidade da Amazônia.
Agradecimentos
Referências
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