Autores
Santos da Cruz, E.N. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ) ; de Souza Vilhena, E.C. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ) ; Gonçalves Bezerra, M. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ) ; Gomes dos Santos, E. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ) ; dos Santos Barros, Y. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ) ; Lima Santos, P.V. (UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ) ; de Sousa Peixoto, L. (UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ) ; Caldeira Fernandes, A. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ)
Resumo
Este trabalho possui a finalidade de elaborar uma sequência didática a partir do saber popular do ato de cozinhar a maniva. Além disso, objetivou-se utilizar os conceitos de didática humanizadora e alfabetização científica para o ensino de ciências, tendo a química orgânica como enfoque para o desenvolvimento do material proposto. Partindo do princípio que os alunos desconhecem a necessidade do cozimento da maniva e a causa da presença do ácido cianídrico, foram realizadas pesquisas na literatura sobre o princípio e a ação da toxicidade da maniva. Tem-se como resultado uma sequência didática que permite dispor e associar o saber popular ao saber científico visando contribuir para a aprendizagem dos alunos.
Palavras chaves
Alfabetização científica; Didática humanizadora; Química orgânica
Introdução
Tendo como produto original a folha da mandioca, a maniva é considerada o principal ingrediente da maniçoba. Seguindo a etimologia da palavra, mani vem de “mandioca”, so significa “desfazer” e mba representa “inteiramente ou completamente”. Por outro lado, o seu consumo pelos povos nativos era realizado apenas em períodos de necessidade, onde o “destroçamento” das folhas acontecia em pilão até se obter uma pasta verde (FIDALGO, p. 33, 2007). Nos dias de hoje, a maniçoba recebe uma diversidade de ingredientes que compõem o prato principal. Esta comida é preparada com as folhas da maniva trituradas em máquinas de moer carne e cozidas de cinco a sete dias para eliminar o ácido cianídrico, que é o seu princípio tóxico. Após o cozimento, acrescentam-se carnes de porco e temperos à maniva (FIDALGO, p. 34, 2007). Sendo assim, para os paraenses este prato é tão importante na culinária regional tal qual a feijoada é para os cariocas, paulistas e habitantes de outras regiões do país (FERNANDES, p. 52, 2002), e faz parte do cardápio da maior festividade local que ocorre no mês de Outubro, o Círio de Nossa Senhora de Nazaré. Consoante a isso, tendo em vista a identidade cultural do educando e a importância do reconhecimento do senso comum como complementação à alfabetização científica, seguindo a filosofia do conhecimento, é evidente que a prática educativa exige a existência de sujeitos em que um ao ensinar, aprende, e o outro ao aprender, ensina, fazendo-se necessários métodos, técnicas e materiais para que os conteúdos, sejam ensinados e aprendidos (FREIRE, p. 68, 2016). Para tal, propõe-se um conjunto de atividades organizadas, de modo sistemático, em torno de um gênero textual, seja ele oral ou escrito (DOLZ, NOVERRAZ e SCHNEUWLY, p. 97, 2004), que objetivam utilizar a contextualização social em prol do aprendizado científico. Dessa forma, o seguinte trabalho possui como objetivo central elaborar uma sequência didática a partir do saber popular do ato de cozinhar a maniva. Aliado a isso, utilizou-se dos conceitos de alfabetização científica e didática humanizadora para possibilitar condições favoráveis à aprendizagem dos alunos.
Material e métodos
A partir de levantamentos bibliográficos, foi possível compreender a origem, o mecanismo e os efeitos da toxicidade da mandioca e da maniva, tendo como parâmetros de busca algumas das seguintes palavras-chaves: mandioca, maniva, maniçoba, toxicidade, ácido cianídrico, cianeto e tucupi. Constatou-se que o processo de toxicidade da maniva está ligado a uma série de reações orgânicas que formam o HCN (ácido cianídrico) na mandioca. No entanto, faz-se necessário que haja o contato entre a maniva e o corpo humano, visto que em sua origem natural a maniva não apresenta toxicidade (AMORIM et al, p. 20, 2006). A mandioca é conhecida como Manihot esculenta Crantz, e faz parte do grupo de plantas cianogênicas (CHISTÉ et al, p. 221, 2010). A linamarina e a lotaustralina estão presentes na mandioca por serem consideradas glicosídeos cianogênicos. Estas, após se desligarem da raiz da mandioca, entram em contato com enzimas. A β-glicosidase (ou linamarase) degrada estas enzimas, liberando assim o ácido cianídrico. Isso ocorre por meio da ruptura do tecido vegetal, que possibilita que a linamarina seja hidrolisada enzimaticamente. No entanto, por causa da clivagem - que consiste na separação em duas partes pela ação da água -, origina-se glicose e α- hidroxinitrilas. Com a catálise de α-hidroxinitrilas por uma hidroxinitrila- liase, ocorre a transformação espontânea em HCN e cetona, ou seja, um processo de cianogênese. Formado o HCN, o princípio tóxico da mandioca, a ingestão e/ou inalação do mesmo em grandes quantidades pode causar intoxicação e até mesmo levar à morte (CHISTÉ et al, p. 222, 2010). A Figura 1 representa o conjunto de reações orgânicas que originam o HCN na mandioca. Com isso, a sequência didática foi elaborada tendo como base a importância da aproximação da química ao espaço de vivência dos alunos, de forma com que isso possibilite a percepção e a análise de fenômenos científicos em seu cotidiano. A escolha da metodologia fundamentou-se na alfabetização científica, relacionando os conteúdos escolares com o contexto dos saberes populares, visando que o mesmo seja capaz de perceber, associar e investigar de forma científica os acontecimentos dentro e fora do seu âmbito escolar. Seguindo a BNCC para o Ensino Médio, é possível adequar os assuntos de química de acordo com a característica regional de cada aluno, fazendo uso da sua cultura para o desenvolvimento das competências necessárias na sua formação como cidadão. Por fim, as informações da literatura foram minuciosamente estudadas, de forma com que pudesse ser elaborada a sequência didática baseada no tema, beneficiando-se do saber popular característico da região Norte do Brasil.
Resultado e discussão
Dessa forma, a explicação para o cozimento da maniva se dá pelo decaimento
do teor de cianeto em decorrência da volatilização do composto pela sua
exposição à uma alta temperatura. Com isso, o objeto de estudo escolhido foi
a química orgânica, com ênfase nas reações orgânicas e polaridade dos
compostos orgânicos.
Sob outra ótica, deve-se salientar o uso do conceito de polaridade, uma vez
que a maniva quando triturada e adicionada à água, faz com que os compostos
cianogênicos polares sejam atraídos pela água, que também é considerada uma
molécula polar, ressaltando o ditado “semelhante dissolve semelhante”.
Proposta de sequência didática
Por meio dos levantamentos foi elaborada uma sequência didática que aborda o
saber popular e o saber científico de maneira contextualizada, ou seja,
relacionada ao cotidiano do aluno havendo a possibilidade de tratar
diferentes assuntos, conforme demonstrado na tabela (Figura 2). A proposta
de sequência didática consiste em 4 (quatro) passos:
1) O primeiro passo será o estabelecimento de uma discussão ou debate entre
os alunos acerca dos saberes populares e científicos, já que conforme a
perspectiva de Freire, tem-se a necessidade de estímulo a um diálogo entre
alunos e professores;
2) O segundo passo consiste em fazer uma correlação da química existente no
contexto do saber popular escolhido, neste caso, o ato de cozinhar a maniva.
De maneira mais clara, seria explicitada de que forma a química está
presente no cozimento da maniva, ou seja, nas reações orgânicas, na
hidrólise ácida, no uso de um catalisador etc;
3) O terceiro passo acontecerá com a introdução dos conceitos de química
orgânica, onde fica a critério do professor escolher quais recursos irá
utilizar (quadro, slide etc).
4) O método de avaliação escolhido para a aula consiste na aplicação de um
questionário com 7 (sete) perguntas subjetivas que se direcionam para o
contexto dos saberes populares e científicos, além de possibilitarem uma
análise da aprendizagem dos alunos sobre os conceitos químicos. As perguntas
do questionário estão descritas abaixo:
1) O que mais chamou a sua atenção em relação ao tema?
2) O que você descobriu por meio do debate em sala de aula que ainda não
tinha conhecimento?
3) Cite exemplos de saberes populares existentes na sua região.
4) Qual é o princípio tóxico da maniva? O que pode acontecer se você o
ingerir em grande quantidade?
5) Qual é a explicação química para o teor de cianeto na maniva decair após
a exposição à uma elevada temperatura?
6) Diferencie os tipos de reações orgânicas que foram ensinadas em sala de
aula.
7) De que forma o catalisador modificou a reação orgânica presente na
maniva?
Assim, a principal discussão do artigo se baseou em analisar como a
utilização do saber popular permite ao aluno relacionar conceitos químicos
ao seu cotidiano, de forma com que consiga enunciar cientificamente o que
até então era ensinado de maneira hereditária e consolidado de forma
empírica. Tal projeto de ensino pretende oferecer orientação ou servir de
modelo para outros professores na construção de sua didática no ensino de
Química.
Esquema reacional da hidrólise enzimática da linamarina
Tabela com os conteúdos que podem ser abordados a partir do tema
Conclusões
Em um país como o Brasil, onde a educação possui cunho tradicionalista, isto é, costuma ser marcada pela memorização dos conteúdos, o popularmente dito “decoreba”, a proposta de relacionar o saber popular ao ensino de Química em sala de aula, pode se mostrar eficaz para o rompimento desse panorama na educação brasileira. É importante salientar que a proposta construída ao longo desta produção - a sequência didática -, é uma sugestão do que se pode fazer para ensinar Química de uma forma mais ampla e abrangente, ficando a cargo do educador realizar as modificações metodológicas que preferir. Contudo, ressalta-se que o objetivo deste trabalho de estabelecer uma relação entre os conceitos de didática humanizadora e alfabetização científica, necessitam de certas implicações. Tais implicações se referem à forma mais consistente de ensinar Química por meio da perspectiva do saber popular, o que diz respeito à formação continuada dos professores, além da importância do diálogo para a construção da relação professor-aluno. Logo, compete ao educador aperfeiçoar o estudo acerca dos saberes populares e o contexto cultural no qual seus alunos estão inseridos, acrescentando ao processo de ensino e aprendizagem o que seus alunos já sabem, ou seja, os seus conhecimentos prévios. Ressaltando que o uso dos saberes populares em sala de aula tendem a potencializar a didática dos professores e a relação aluno-cotidiano.
Agradecimentos
Referências
AMORIM, S. L.; MEDEIROS, R. M. T.; RIET-CORREA, F. Intoxicações por plantas cianogênicas no Brasil. Ciência Animal, v. 16, n. 1, p. 17-26, 2006.
CHISTÉ, R. C.; COHEN, K. O.; MATHIAS, E. A.; OLIVEIRA, S. S. Quantificação de cianeto total nas etapas de processamento das farinhas de mandioca dos grupos seca e d’água. Acta Amazônica, v. 40, n. 1, p. 221-226, 2010.
FERNANDES, C. Viagem gastronômica através do Brasil. 3.ed. São Paulo: Editora Senac: Editora Estúdio Sonia Robatto, 2002.
FIDALGO, J. G. A autenticidade da gastronomia paraense. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como exigência parcial para a obtenção do título de Pós-Graduação em padrões gastronômicos da Universidade Anhembi Morumbi. São Paulo, 2007, p. 42.
FURTADO, J. L. B.; BEZERRA, C. W. B.; MARQUES, E. P.; MARQUES, A. L. B. Cianeto em tiquiras: riscos e metodologia analítica. Ciência e Tecnologia de Alimentos, v. 27, n. 4, p. 694-700, 2007.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa,. 53. ed. atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016. 143 p.
DOLZ, J; NOVERRAZ, M; SCHNEUWLY, B Seqüências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY, Bernard.; DOLZ, Joaquim. e colaboradores. Gêneros orais e escritos na escola. [Tradução e organização: Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro]. Campinas-SP: Mercado de Letras, 2004.