Autores

Sacchi, F.G. (USP) ; Queiroz, S.L. (USP)

Resumo

A compreensão e apropriação da linguagem científica requer a realização de uma análise crítica de uma série de práticas adotadas pelos cientistas na elaboração de textos científicos. Este trabalho descreve uma atividade didática aplicada a alunos de um Curso de Bacharelado em Química pautada na leitura e identificação de características retóricas de artigos originais de pesquisa (AOP). As respostas dos alunos aos exercícios propostos foram analisadas com base nos escritos de Oliveira e Queiroz, Latour, Campanario e Coracini. Os resultados indicaram que os estudantes foram capazes de identificar as estratégias retóricas presentes nos AOP, sendo que a atividade contribuiu para o desenvolvimento de habilidades de escrita e produção de textos científicos de forma menos ingênua.

Palavras chaves

QUÍMICA; ENSINO SUPERIOR; LINGUAGEM CIENTÍFICA

Introdução

Os trabalhos reportados na literatura enfatizam a importância da comunicação científica, sendo que a mesma não é necessária somente para os cientistas que estão na fronteira da ciência, mas para todos os cientistas em diversos estágios de suas carreiras. Em relação ao Curso de Bacharelado de Química, as Diretrizes Curriculares Nacionais destacam que o aluno egresso deve ser capaz de, dentre outras competências, “ler, compreender e interpretar os textos científico-tecnológicos”, “escrever, apresentar e defender seus achados”, “saber comunicar corretamente os projetos e resultados de pesquisa na linguagem científica” (BRASIL, 2001). Os autores Cachapuz et al. (2005) discutem que um dos propósitos atuais da educação em ciências é proporcionar aos estudantes o entendimento da construção da dinâmica do conhecimento científico. Um elemento que influencia neste processo é a comunicação entre os pares, a qual se dá principalmente por intermédio dos textos científicos. Apesar das recomendações das Diretrizes Curriculares Nacionais e de autores, são raros os trabalhos produzidos no país no sentido de aprimorar a comunicação científica de estudantes do ensino superior de Química e habilitá-los na leitura crítica de textos científicos. Sendo assim, a realização de atividades didáticas vinculadas à leitura e produção dos textos científicos tem chamado particular atenção e sido alvo de pesquisas. No que diz respeito à leitura e produção de artigos originais de pesquisa (AOP), é fundamental que os estudantes se apropriem da linguagem científica, o que requer compreensão clara e profunda dos recursos linguísticos empregados pela comunidade científica na construção de textos, ou seja, uma análise das características retóricas (OLIVEIRA; QUEIROZ, 2012). De acordo com Campanario (2004), apesar da comunicação científica desempenhar um papel essencial na dinâmica da ciência, características presentes nos textos científicos, como as características retóricas, raramente recebem atenção por parte daqueles que estudam e/ou fazem a ciência. A aprendizagem sobre a processo das publicações e de sua importância para um cientista é promovida geralmente de forma implícita ou não planejada durante o percurso de formação de um pesquisador (CAMPANARIO, 1999). Conjuntamente a isso, os materiais didáticos desenvolvidos com o intuito de aprimorar a linguagem científica dos alunos revelam que as atividades implementadas em sala de aula geralmente colocam em foco apenas os aspectos estruturais dos textos científicos, tais como a organização das seções típicas dos trabalhos dessa natureza e algumas de características mais comumente divulgadas e reconhecidas entre os membros da comunidade científica (SCHEPMANN; HUGHES, 2006; MASSI et al., 2009; ROBINSON et al., 2009). Nessa perspectiva, as práticas de leitura e produção de textos científicos aplicadas em tais atividades deixam em segundo plano justamente as características da linguagem que costumam propiciar aos estudantes uma visão mais crítica sobre os mesmos. Diante desse cenário, os alunos, em geral, adotam uma postura passiva frente aos textos científicos com os quais se deparam, dificilmente questionando-os quanto aos seus conteúdos, conclusões, metodologia ou objetos de estudo apresentadas pelo autor (CORACINI, 2007). Para que haja compreensão e apropriação da linguagem científica é importante a realização de uma análise crítica de uma série de práticas adotadas pelos cientistas na elaboração dos artigos originais de pesquisa. Fundamentalmente, faz-se necessária uma discussão acerca das caracterís¬ticas retóricas da linguagem científica no contexto do Ensino Superior de Química, bem como a aplicação de materiais didáticos que auxiliem os alunos no reconhecimento de tais aspectos e na leitura crítica de textos de Química. Neste trabalho, discutiremos a aplicação de atividades baseadas em características retóricas em uma disciplina de comunicação em linguagem científica, a qual foi criada com o intuito de atender às necessidades imprescindíveis para a formação do bacharel em Química, em seus diversos campos de atuação, com destaque para aqueles que frequentemente se engajam na produção do conhecimento científico. As atividades foram selecionadas de um material didático sobre aspectos retóricos da linguagem científica, o qual se encontra disponível no site do Grupo de Pesquisa em Ensino de Química do IQSC (http://www.gpeqsc.com.br/sobre/manuais/jane/Manual-Retorica-do-Texto Cientifico.pdf) e como material suplementar de artigo publicado na revista Química Nova (OLIVEIRA; QUEIROZ, 2011b). O material foi aplicado originalmente em atividades didáticas no ensino superior tendo em vista o desenvolvimento da capacidade de identificação de estratégias retóricas empregadas em artigos científicos da área de química.

Material e métodos

As atividades foram selecionadas do material didático sobre aspectos retóricos (OLIVEIRA; QUEIROZ, 2011b) e aplicada em uma disciplina de comunicação em linguagem científica que tem como um dos objetivos o fornecimento de subsídios que permitam aos alunos a realização de uma leitura crítica da literatura primária em Química. Tal disciplina é oferecida aos alunos matriculados no terceiro semestre do curso de Bacharelado em Química do Instituto de Química de São Carlos, da Universidade de São Paulo. A pesquisa contou com a participação de 20 alunos e as atividades selecionadas foram: “Os Aliados dos Textos Científicos”; “A Presença do Autor nos Textos Científicos” e “Tipos de Citações Presentes em Textos Científicos”. Nas três atividades, os estudantes trabalharam em grupo, sendo formados quatro grupos constituídos por cinco alunos. Os alunos leram e realizaram os exercícios propostos sobre artigos originais de pesquisa da área de Química. Os artigos foram selecionados da revista Química Nova exposto no Quadro 1 (Figura 2) A escolha de artigos originais de pesquisa que tratam da temática biodiesel se justifica pela publicação na revista de textos em língua portuguesa, não muito longos (em média seis páginas) e que abordam temáticas que não exigem o conhecimento de técnicas analíticas complexas. O atendimento de tais critérios na escolha do texto é relevante devido ao fato dos alunos cursarem o terceiro semestre do curso de Bacharelado em Química e não terem tido ainda contato com determinados conteúdos de Química. Os resultados de questões oferecidas pelos alunos às referidas atividades permitiram investigar como foi realizada a identificação dos aspectos retóricos no artigo original de pesquisa. Diante disso, correlacionamos a resposta de cada grupo com os componentes da linguagem abordados em cada atividade e contabilizamos o total de grupos que identificou corretamente os aspectos discutidos. Ressaltamos que os dados foram produzidos por meio das respostas de quatro grupos constituídos por cinco alunos.

Resultado e discussão

Nesta seção, apresentaremos resultados obtidos na aplicação de atividades referentes aos aspectos retóricos do texto científico. As atividades serão aqui intituladas de Atividade I: Aliados do texto científico, Atividade II: Presença do autor nos textos científicos e Atividade III: Os tipos de citações nos textos científicos. Atividade I: Aliados do texto científico A Atividade I consistiu em um exercício de identificação dos “aliados do texto científico”. A Tabela 1 (Figura 1)expressa a relação entre os aliados propostos na atividade e o número de grupos que identificaram corretamente tais elementos nos artigos analisados. Verificou-se que os elementos retóricos “autores que estudam o mesmo tema” e “as publicações do próprio grupo” tiveram as maiores frequências de identificação pelos grupos de alunos. Coracini (2007) cita que um texto resulta do entrecruzamento de uma série de outros textos, consequentemente de outros autores e de diferentes discursos. Assim, os recursos mencionados são bastante utilizados nos textos científicos e até mesmo recomendados em manuais de redação científica. (OLIVEIRA; QUEIROZ, 2011a). O trecho abaixo indica a resposta de um dos grupos de forma a expressar um dos aliados: Indicações de publicações anteriores do grupo relacionadas ao tema em foco: “Carvalho et. al17 verificou a capacidade de adsorção de fosfatos em água[...]. ” Neste exemplo, observou-se que para o reconhecimento dos elementos retóricos, foi necessário que os alunos investigassem as referências bibliográficas, sendo estas consideradas por Oliveira e Queiroz (2011a) como fortes estratégias de persuasão. Embora com menor frequência, os aspectos inéditos do trabalho e as instituições que apoiaram a pesquisa, também foram reconhecidos pelos alunos na atividade proposta. A presença de aspectos inovadores na pesquisa é considerada um forte aliado nos textos científicos, porém, nem todos os trabalhos são inéditos, podendo ser um dos motivos no qual este elemento não se destacou na identificação dos aspectos retóricos. Já em relação ao segundo elemento, contamos com o fato de que as agências financiadoras exigem sua menção nas publicações decorrentes de pesquisas por elas financiadas, todavia, de acordo com Oliveira e Queiroz (2007) não é obrigatória. Isto revela que nem todos os artigos selecionados apresentaram todos os aliados propostos na Atividade I. Em relação à citação de revistas conceituadas na área, apenas um grupo identificou este elemento. Todos os artigos selecionados apresentaram citações de revistas nacionais e internacionais de grande importância na área, no entanto a identificação deste item exige familiaridade do aluno com a área. Os grupos não identificaram no artigo os autores reconhecidos na área. Esse resultado é compreensível, pois a referida identificação exigiria também familiaridade do aluno com linhas de pesquisa e periódicos da área. Estes não eram, portanto, um aliado fácil de ser reconhecido por alunos de graduação. No segundo item da Atividade 1 os alunos foram solicitados a encontrar outros tipos de aliados no artigo analisado. Três grupos indicaram possíveis aliados, porém, apenas dois tiveram êxito na reposta. Finalizando a Atividade 1, propusemos aos alunos a seguinte reflexão: “Vocês consideram que estes aliados realmente contribuam para fortalecer o texto científico? ” Todos os alunos concordaram com a importância do uso dos “aliados” como estratégia de linguagem para dar credibilidade ao texto e foram capazes de se posicionar criticamente diante do questionamento. Atividade II: Presença do autor nos textos científicos Na Atividade II os alunos foram solicitados a buscar a “presença do autor” no artigo original de pesquisa e transcrever as passagens na qual isso ocorria. A Tabela 2 (Figura 1) expressa a relação entre os itens que mostram a “presença do autor” nos textos científicos e o número de grupos que identificaram corretamente tais elementos nos artigos analisados. Observa-se que vários itens se destacaram, indicando o caráter subjetivo das pesquisas. Apenas os elementos “Autor avalia os trabalhos e sugere novas pesquisas” e “Autor utiliza expressões que denotam dúvidas ou incertezas sobre os resultados” não foram identificados por todos os grupos. Isso pode ter ocorrido porque algumas “marcas” deixadas pelo autor nem sempre estão presentes nos textos científicos. Por fim, na Atividade II os alunos foram solicitados a responder a seguinte questão: Vocês consideram que a “presença” do autor no texto fortalece ou enfraquece o texto científico? Verificou-se que dois grupos concordaram com o fato de que as “marcas” do autor fortalecem o texto, assim os outros dois grupos argumentaram que as “marcas” enfraquecem o texto. O exemplo a seguir demonstra um dos grupos que cita as marcas como fortalecimento do texto: “Fortalece, pois a presença do autor aproxima o leitor do texto, o que facilita o entendimento do texto e atrai mais o público. ” O aluno apresenta uma visão de ciência diferente daquela tradicionalmente divulgada, pois aceita com naturalidade os aspectos subjetivos do discurso científico. Atividade III: Os tipos de citações no texto científico Na aplicação da Atividade III os alunos foram solicitados a buscar estes tipos de citações no artigo que lhes foi concedido. As respostas permitiram a construção da Tabela 3 (Figura 2), que mostra a relação entre os tipos de citações e o número de grupos que as identificou. Observa-se que as maiores frequências estão relacionadas aos itens “Citações que constituem o paradigma adotado pelo autor” e “Citações que apresentam o método utilizado”. Cabe destacar que os itens “Citações de trabalhos anteriores realizados pelo próprio grupo” e “Citações de trabalhos de outros autores com dados semelhantes” também se destacaram. Em contraponto, “Citações de outros autores com resultados discordantes” não foram identificadas, o que indica que estas são raras no texto científico. Em geral, os autores realizam revisão bibliográfica com o intuito de comparar os resultados obtidos com resultados previamente obtidos em outros trabalhos, podendo concordar ou discordar com estes resultados. Em relação aos artigos fornecidos para a realização das atividades, há evidências de discordância em apenas um artigo, no entanto, o grupo não foi capaz de identificá-las.

Tabela 1 e 2



Tabela 3 e Quadro 1



Conclusões

Neste trabalho, buscamos evidenciar as características retóricas da linguagem científica, as quais, ainda que essenciais a uma visão mais real dos textos científicos, nem sempre são reconhecidas até mesmo por pesquisadores da área. Os alunos matriculados na disciplina de comunicação em linguagem científica tiveram a oportunidade de compreender a disseminação do conhecimento por meio dos artigos originais de pesquisa e desenvolver habilidades comunicativas orais na preparação e organização de apresentações acadêmicas. A análise de dados nos permite dizer que os estudantes reconheceram nos artigos originais de pesquisa diversas estratégias retóricas e elementos subjetivos comuns no discurso da ciência. Contando que as atividades estimulavam a reflexão e o posicionamento crítico dos alunos, promovemos a formação de um leitor crítico diante dos textos que circulam na comunidade acadêmica. Diversas ideias e posicionamentos críticos apresentados pelos estudantes nestas atividades foram fortemente influenciados pelas suas experiências na disciplina de comunicação em linguagem científica, nas quais puderam aprender sobre a dinâmica e a estrutura das publicações científicas. No geral, isto demonstra a relevância de disciplinas dessa natureza não somente nos currículos dos cursos de graduação em Química, mas também nos cursos de graduação em Ciências como forma de familiarizar os estudantes com aspectos gerais da linguagem científica, fornecendo-lhes uma base sólida para compreender e discutir características mais profundas do discurso da ciência, como as características retóricas. Sob o nosso ponto de vista, a capacidade de conhecer e identificar as estratégias retóricas, aliada à visão crítica do aluno, contribui para o desenvolvimento de habilidades como escrita e produção de textos de cunho científico. Neste ponto, as habilidades não se manifestam mais de forma ingênua e o aluno passa a tomar decisões conscientes quanto ao uso de recursos retóricos.

Agradecimentos

As autoras agradecem ao Programa de Aperfeiçoamento de Ensino pela oportunidade de realização de um estágio e elaboração do presente trabalho e à CAPES pelo auxílio financeiro.

Referências

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