Autores
Marin, N.G. (UFAM) ; Pulgarin, M.G.S. (UFAM) ; Santos, V.S. (UFAM)
Resumo
Nas últimas décadas tem sido significante as lutas dos povos indígenas pelo direito básico a educação. Apesar dos avanços, ainda existe um longo caminho a ser trilhado para a efetivação desses direitos, pois, muitos ainda são os obstáculos presentes nesta trajetória. Neste sentido, esta pesquisa tem como objetivo observar os desafios encontrados pelos professores indígenas de Química em uma escola pública ticuna no interior do Amazonas. Para a realização deste trabalho, utilizou-se como procedimento metodológico para coletar dados um questionário realizado com três professores que lecionam a disciplina de Química. Com base nas respostas dos sujeitos, observam-se imensuráveis problemas presentes dentro deste âmbito escolar que podem ser minimizados através de políticas públicas efetivas.
Palavras chaves
formação de professores; etnia ticuna; ensino de química.
Introdução
As conquistas educacionais dos povos indígenas foram significativas nas últimas décadas, principalmente após o direito da educação própria alcançado na Constituição Federativa do Brasil de 1988, e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), de 1996, que assegurou as comunidades indígenas, o direito a educação escolar intercultural. A atuação de indígenas como professores e gestores de suas escolas, portanto, é uma decorrência deste direito, resultado de várias reivindicações do movimento indígena nos anos de 1980 e 1990 que trouxeram a cena debates sobre a educação, a questão cultural e a independência dos povos. As escolas indígenas foram criadas como espaço de levar o indígena a assimilar a língua e a cultura nacional, ancorado na interculturalidade, buscando articular os diferentes conhecimentos e saberes, possibilitando formar indígenas que dialoguem com a sociedade envolvente, sem, contudo, desconsiderar sua cultura e suas tradições. Diante disso, pode-se afirmar que a escola não é um espaço único de aprendizado cientifico, mas com um novo lugar e tempo educativo que se integra ao sistema mais amplo de educação de cada povo. Para garantir a existência da escola indígena faz-se necessário a presença de um condutor de todo o processo educacional, o professor. Contudo, ressalta-se que quando se discute a formação de professores é indispensável considerar que se forma um professor para atuar em realidades concretas. Tratando-se de professores indígenas, é imensurável os conflitos que os mesmos estão envolvidos: conflitos de cultura, de sociedade, de identidade, etc., o que exige, nesse caso, alguma coisa a mais, na sua formação acadêmica. Nesse caminho, enquanto esta nova realidade se encaminhava a uma conquista, trazendo ares de vitória, colava-se sobre o professor indígena profundos desafios: tomar para si a responsabilidade pelo processo de educação formal de seus cidadãos sem uma formação acadêmica adequada em um espaço inapropriado as condições físicas, materiais e humanas para o funcionamento desta modalidade de ensino. Diante deste cenário, esta pesquisa tem como objetivo observar os desafios encontrados pelos professores indígenas de químicas afim de efetivar o ensino em uma escola pública ticuna na Comunidade de Filadélfia, Amazonas.
Material e métodos
O trabalho aqui apresentado configura-se como uma pesquisa descritiva e exploratória, cuja a abordagem é qualitativa. Segundo Gil (2008), este tipo de pesquisa é indicado para investigações que tem como objetivo desenvolver, esclarecer ou modificar conceitos e ideias, tendo em vista a formulação de problemas, ou ainda, descrevendo as características de determinada população ou fenômeno, utilizando técnicas padronizadas de coleta de dados, como o questionário e a observação sistemática. Buscando compreender a realidade e as perspectivas encontradas na efetivação da educação no ensino de química no contexto escolar indígena, esta pesquisa ocorreu na Escola Estadual Indígena Professor Gildo Sampaio Megatanücü da Comunidade de Filadélfia, pertencente ao povo ticuna (maior etnia do Brasil), localizada próximo a cidade de Benjamin Constant, Amazonas. Os sujeitos investigados foram três professores que lecionam a disciplina de química no turno diurno, sendo dois professores indígenas ticunas e uma não- indígena. Os dados foram obtidos por meio de um questionário com sete perguntas semiestruturadas realizadas com os docentes individualmente em suas horas livres. Por questões éticas, todos os envolvidos foram devidamente informados dos objetivos e métodos e aceitaram participar voluntariamente da pesquisa. No intuito de garantir o anonimato dos investigados, a identificação ocorreu por meio de algarismos alfanuméricos, sendo adotadas as siglas PI1 (professor indígena 1), PI2 (professor indígena 2), P3 (professora não- indígena). A análise e discussão dos resultados foram realizados pela metodologia da Análise de Conteúdo. Do ponto de vista de Bardin (2012) esta técnica sugere uma maneira de analisar os dados de forma a extrair as mensagens e significados contidos nas respostas. Além disso esta técnica de análise permite a classificação de elementos constitutivos de um conjunto, por diferenciação e, após, por reagrupamentos segundo o gênero com os critérios previamente definidos. A partir dos dados coletados, dividiu-se o questionário em categorias, para facilitar a discussão, à saber: 1) Conflitos vivenciados em suas práticas educacionais; 2) Professor: elemento integrador da Comunidade; 3) Relação entre o conhecimento científico e tradicional; 4) Livro didático, recursos pedagógicos e espaço; 5) Formação dos Professores.
Resultado e discussão
Partimos da premissa que dos três professores que lecionam a disciplina de
química na escola pública de Filadélfia, apenas o (PI2) é formado na área. O
primeiro professor entrevistado (PI1) tem como formação o curso de
Administração, e a professora (P3), recentemente contratada pela direção da
escola é formada em Biologia. Cabe ressaltar que os dois primeiros moram na
Comunidade de Filadélfia e pertencem a etnia ticuna, já a última, mora em
Benjamin Constant e não possui conhecimento da língua ticuna.
Diante das respostas dos professores em relação aos tipos de conflitos
vivenciados em sua prática educacional, destaca-se a interação entre
professor-aluno, como um conflito muito presente no cotidiano dos
educadores, onde podemos destacar os trechos: “Falta de participação dos
alunos em questionar, interagir com os professores” (PI1). “Eles são muito
fechados, pouco receptivos, isso dificulta na aprendizagem” (P3). O (PI2)
afirma que o educador deve ser visto como um mediador e não como um inimigo
dos alunos. Além disso, que: “um bom relacionamento pode contribuir com o
ambiente de estudo e no desenvolvimento dos alunos”.
Em contrapartida aos conflitos vivenciados no ambiente escolar, quando
perguntados se eles como professores acreditam ter um papel importante
dentro da escola e da comunidade, relatam: “Cabe a nós professores forma
alunos críticos e líderes [...] Ensinando-os a respeitar e conviver
socialmente” (PI1). “Me identifico como parte integrante da comunidade, na
qual luto ao combate da violência dentro e fora da escola” (PI2).
Nas falas nota-se a preocupação em formar cidadãos que possam conviver
socialmente em um espaço, desenvolvendo ao aluno a autonomia de sujeitos,
seu senso crítico e na construção de competências de atores sociais.
Outra questão presente no âmbito escolar é a discussão sobre o ensino de
química no aprimoramento dos processos de ensino-aprendizagem. Na busca por
um Ensino de Química que vise a inclusão de contextos regionais, faz-se
necessário promover o diálogo entre o conhecimento científico e o
tradicional, para que os alunos compreendam que também praticam a química no
seu cotidiano.
Quando perguntados se os mesmos promoviam a relação entre o conhecimento
cientifico e tradicional em sala, os sujeitos destacam: “Sempre dou exemplo
do dia-a-dia deles [...] Se o professor aplicar só teoria, será uma aula
chata” (PI1). “Através dos conteúdos de química, comparo exemplos do
conhecimento científico ao cotidiano” (PI3). A professora (P3) esclarece
algo muito importante: “na disciplina é usado os conhecimentos tradicionais,
é uma regra na comunidade”. Além disso, ela afirma que tem dificuldade em
aplicar este conhecimento com os alunos, não conseguindo associar os
conteúdos de química com a cultura ticuna.
Nesta relação, abordar o ensino de química envolvendo a cultura ticuna e
correlacionando com os conteúdos presentes nos livros didáticos possibilita
aos alunos além de conhecimento, despertar a curiosidade. De alguma forma,
esses alunos acabam se tornando mais seguros e valorizados ao verem suas
tradições aceitas pelos professores.
Contudo, primeiramente é importante estabelecer o conhecimento cientifico
sobre os saberes locais, e depois manter o diálogo entre a ciência ensinada
na escola e o saber local. Para isso, o livro didático acaba se tornando a
principal ferramenta de transmissão do conhecimento científico nessa nova
dimensão cultural.
Esse discurso acaba se concretizando nas aulas de química da escola. Quando
perguntados sobre os pontos positivos e negativos dos livros didáticos (LD),
os professores se manifestam: “os livros são usados somente pelo docente,
não são utilizados pelos alunos, devidos que não tem exemplares suficientes”
(PI2).
O professor (PI1) esclarece sobre os livros: “todos eles são em língua
portuguesa, ainda não temos em nossa língua. Ele ainda ressalta: “posso
transformar a teoria em prática. O ponto negativo é falta de experimento nos
livros com materiais simples, pois não temos elemento químico na escola,
falta de equipamento no laboratório”.
Além disso, os livros didáticos utilizados pelos professores da comunidade
não possuem relação nenhuma com o contexto local, apesar de ser ainda um dos
principais recursos utilizados pelos professores em sala de aula.
Sobre este fato Lopes (1993) ressalta que o uso indiscriminado de termos
científicos, sem distinguir seus significados em relação aos termos da
linguagem comum, pode não apenas impedir o domínio do conhecimento
científico, como também cristalizar conceitos errados, verdadeiros
obstáculos à abstração.
Outra problemática presente em relação aos LD está na quantidade de livros
que chegam até as escolas indígenas, presente na fala da (P3): ”pontos
negativos são as quantidades, pois nem todos os alunos receberam”. Além
disso, cabe destacar que não existe LD de química produzidos para escolas
indígenas e que a maioria dos livros que o governo distribui para as escolas
são pouco contextualizados.
Nesse campo, outro desafio encontrado é a infraestrutura, apontada como um
fator que demanda de investimento. Segundo o Censo Escolar (2017), um terço
das escolas indígenas não dispõem de um espaço físico construído pelo poder
público para funcionar. Neste sentido, os professores acrescentam:
“Praticamente a nossa escola não tem recursos didáticos, não tem iluminação
boas em sala de aula” (PI2). “O espaço físico não condiz com a realidade de
uma escola padrão e de qualidade diferenciada. Laboratório escasso, sem
equipamentos e substancia química” (PI1).
Ao conversar com os professores de química (PI1) e (P3) sobre os espaços
físicos e materiais pedagógicos da escola, um deles relata que, a direção e
os professores da escola fazem de tudo para mostrar aos governantes que os
mesmos são capazes de formar cidadãos críticos e diferenciados. Os
professores ainda relataram que não realizam atividades experimentais tendo
em vista a escassez de materiais e equipamentos do laboratório. E que isso
acaba gerando dificuldades de compreensão dos conceitos abordados nas aulas
de Química.
Neste sentido, os professores falam: “As dificuldades de aprendizagem não
devem ser atribuídas somente a fatores externos, mas a fatores internos como
os métodos de ensino, a falta de materiais didáticos apropriados, condições
psicológicas” (PI2). A professore não-indígena afirma que o desinteresse dos
alunos vem do ensino básico.
Evidencia-se que todos esses desafios supracitados pelos sujeitos da
pesquisa estão atrelados de alguma maneira a formação do professor indígena,
pois a maioria participa de um sistema de universidades que não consideram a
atuação do professor em um ambiente diverso, requerendo competências
diferenciadas na sua formação acadêmica. Quando se discute a formação de
professores faz-se necessário considerar que se forma um professor para
atuar em realidades concretas.
Partindo dessa informação, perguntou-se aos professores se ele foi preparado
para atuar em uma escola indígena. A professora não-indígena responde: “Não,
no meu caso existe a dificuldade com alguns alunos, eles não entendem bem a
língua portuguesa”.
Nas respostas dos dois professores indígenas verifica-se que pelo fato de
pertencerem a etnia ticuna influencia nas suas respostas:
“Sou bilíngue e uma pessoa preparada e comprometida com a causa da educação
indígena na minha comunidade. Tive uma grande experiência intelectualmente
estimulante e socialmente relevante durante a minha formação acadêmica”
(PI2). “Sempre tive preparado, não importa a dificuldade [...] Hoje apesar
de não ser graduado em Química, eu mim considero um professor apto”.
Assim, nota-se que ser professor indígena significa estar em constante
formação, é se transformar perante os desafios presentes no dia-a-dia, e
refletir sobre os processos, de modo a aprimorar a prática docente. Além
disso, verifica-se que ser professor indígena inclui uma especificidade, que
é a de conhecedores da própria cultura.
Conclusões
Apesar de toda conquista histórica da educação indígena no país observa-se através desta pesquisa a quão necessária, urgente e desafiadora é esta temática. Não obstante os avanços em termos legais, há ainda um enorme caminho a ser percorrido para que o fortalecimento da educação escolar indígena possa ser consolidado. Além disso, detecta-se muitas dificuldades e desafios que precisam ser superados para promover a melhoria do ensino de química nas escolas indígenas brasileiras. Ressaltamos que, muitos são os desafios encontrados nesse caminho, e que a formação de professores indígenas é apenas uma em dezenas de problemas, tais como, a falta de recursos (financiamento), apoio psicológico, livros didáticos sem contexto local, descontinuidade das políticas, a cobrança pelo resultado e não com a qualidade da formação, etc. Salientamos que os professores indígenas ainda precisam lutar muito pela continuidade dessas ações, para que o direito a uma educação intercultural seja, de fato, garantido. Ademais, observa-se através das respostas dos professores, o quão é difícil ensinar química em um espaço inapropriado, sem as condições físicas necessárias, e livros didáticos que não apresentam relação com o contexto da realidade indígena. Além disso, não fazem referência entre o conhecimento científico e o conhecimento prévio do aluno. Contudo, apesar de todos esses empecilhos, é notório o comprometimento desses professores com a causa da educação em sua comunidade.
Agradecimentos
Os autores agradecem a direção e professores da Escola Estadual Indígena Professor Gildo Sampaio Megatanücü por ter permitido a realização deste estudo.
Referências
BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2012.
GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. Ed. São Paulo: Atlas, 2008
LOPES, A.R.C. Livros didáticos: obstáculos verbais e substancialistas ao aprendizado da ciência química. Brasília, 1993.