Autores

Pereira, C.F.C. (UFRJ) ; Martinhon, P.T. (UFRJ) ; Becker, S. (UFGD) ; Rocha, A.S. (UERJ) ; Sousa, C. (UFRJ)

Resumo

O Ensino Superior no Brasil reflete uma divisão de acordo com o gênero na escolha de cursos por parte de estudantes, com homens frequentando áreas estereotipadas como masculinas e mulheres áreas tradicionalmente demarcadas como femininas. Este trabalho busca investigar esta realidade a nível de Ensino Médio, bem como a percepção de estudantes acerca do papel da mulher nas ciências exatas, por meio da realização de um estudo de caso, via aplicação de questionário para alunas e alunos de um colégio estadual do Rio de Janeiro. Por um lado, os resultados mostram preferências relativamente equilibradas entre alunos e alunas em relação às ciências, porém ainda demonstram uma falta de reconhecimento por parte de estudantes sobre as contribuições e da presença feminina no contexto científico.

Palavras chaves

Ciências Exatas; Gênero; Representatividade

Introdução

A questão da representatividade da mulher, não apenas em relação aos campos científico, acadêmico ou profissional, mas em todos os aspectos sócio- político-econômicos atuais, é de uma grande complexidade e pode ser analisada a partir de uma variedade de lentes (MURPHY; STEELE; GROSS, 2007). Neste trabalho, pretende-se analisar esta questão no contexto do campo científico e da participação da mulher nas ditas Ciências Exatas, com o foco voltado para o ambiente escolar. Quais informações chegam às (aos) estudantes em sala de aula? Que mensagens elas transmitem? Elas reproduzem estereótipos de gênero ou perpetuam a ideia de que ciência é uma atividade masculina? Se sim, como isto se reflete nas percepções de estudantes sobre a atuação da mulher na mesma? A educação “[...] é considerada relevante no que se refere ao seu papel de diminuição das desigualdades sociais, ou seja, como promotora de cidadania social” (SOBRAL, 2000). Deste modo, sendo a docência uma profissão acima de tudo humana, entende-se que as questões sociais que permeiam a vida em sociedade devem fazer parte da formação de professores e serem reproduzidas no processo de ensino-aprendizagem desenvolvido em sala de aula. Historicamente, a química e áreas afins são tidas (excetuando a docência) como uma atividade realizada predominantemente, se não exclusivamente, por homens. Consequentemente, ao longo da história a participação da mulher no âmbito científico desta área foi, por muitos séculos, alternadamente ou invisibilizada ou intencionalmente negada (SCHIEBINGER, 2001). Frente a esta realidade, podemos dizer que “[...] é na história onde podemos aprender a valorizar a influência dos fatores sociais no conhecimento [...]” e, deste modo “[...] conhecer as circunstâncias que favoreceram a participação ou a exclusão de distintos grupos humanos no desenvolvimento científico” (PORTOLÉS, 2001 apud SILVA, 2008). A química, assim como qualquer outro campo de estudo, não é imparcial às questões de gênero que permeiam as nossas estruturas sociais. Pensando nas origens da Ciência Moderna, observa-se que a mesma jamais teria como ser neutra, uma vez que “[...] foi arrebatada pelos homens, brancos, heterossexuais e ocidentais, estes que selecionam o que conhecer, para que conhecer e que, desde sempre, foi submetida a financiamentos, tanto dos governos, como de particulares” (SILVA, 2008). Analisando o contexto atual brasileiro à luz destes conhecimentos, observamos ainda uma significativa divisão por gênero existente na escolha de cursos de Ensino Superior por estudantes homens e mulheres, entre aqueles que têm sido demarcados como masculinos (como a química e as engenharias) ou femininos (como a enfermagem e a pedagogia), de acordo com ideias estereotipadas historicamente perpetuadas na nossa sociedade (INEP, 2013). Esta realidade se mostra similar à observada também no âmbito mundial. O Instituto de Estatísticas da UNESCO observou que as mulheres são mais propensas do que os homens a se formarem nos quatro seguintes campos do Ensino Superior: Educação; Artes e Humanidades; Ciências Sociais, Negócios e Direito; e Saúde e Bem-Estar. Em contrapartida, os homens são maioria em três grandes campos: Ciência; Agricultura; Engenharia, Fabricação e Construção. Neste último, observa-se que, de acordo com dados de 2013, homens correspondem a três quintos de todos os graduandos em 103 dos 105 países com dados disponíveis (UIS, 2017a). Segundo dados do “Relatório de ciência da UNESCO: rumo a 2030”, apresentando as evoluções em Ciência, Tecnologia e Inovação (CTI) mundiais desde 2010, “[...] as mulheres constituem uma minoria no mundo da pesquisa” (UNESCO, 2015), com a diferença de representação entre homens e mulheres aumentando conforme se avança na carreira acadêmica. Frente à realidade de sub-representação feminina nas Ciências Exatas aqui apresentada que ainda se perpetua a nível nacional e global, decidimos investigar a reprodução, ou não, destas tendências a nível de Ensino Médio, bem como a percepção de estudantes acerca da presença e do papel da mulher na ciência. É importante ressaltar que o objetivo pretendido com a aplicação desta metodologia de pesquisa não é traçar conclusões definitivas ou, ainda, estatisticamente significativas sobre a questão da representação da mulher nas Ciências Exatas. Isto se reflete na escolha de um pequeno universo de estudo (um único colégio estadual localizado na cidade do Rio de Janeiro) e que, desta forma, não deve ser tomado como representativo de toda uma população, seja ela nacional ou global. O que se pretende com este estudo de caso, na verdade, é apenas investigar se os padrões apresentados neste trabalho viriam a se repetir em uma escala local, isto é, em um ambiente de universo amostral limitado numericamente e escolhido de forma não específica para a realização deste trabalho.

Material e métodos

O método de pesquisa utilizado ao longo deste trabalho se deu predominantemente através da combinação de uma abordagem qualitativo- analítica, junto à coleta e análise de dados via abordagem quantitativa. Considerou-se que a aplicação de ambos os tipos de pesquisa de forma complementar seria a abordagem mais completa e enriquecedora durante o desenvolvimento deste projeto em particular. De modo geral, podemos reconhecer que métodos quantitativos e qualitativos apresentam diferentes aspectos positivos e negativos de pesquisa, configurando desta forma estratégias alternativas, porém não mutuamente exclusivas, que podem coexistir em um mesmo estudo, para benefício do mesmo (PATTON, 2002). Para investigar as questões elucidadas acima, o presente trabalho consiste de um estudo de caso realizado em um colégio estadual localizado na cidade do Rio de Janeiro, na região da Praça da Bandeira. O estudo foi feito através da aplicação de um questionário a estudantes pertencentes aos três anos do Ensino Médio, sendo contemplado um total de setenta e sete respondentes. O acesso às (aos) respondentes se deu em sala de aula, durante as aulas da disciplina de Química ministradas por um professor e uma professora que atuam na instituição de ensino em questão, e os questionários foram aplicados sem que qualquer direcionamento fosse dado às (aos) estudantes em relação à natureza e aos objetivos do trabalho a ser desenvolvido a partir de seus resultados. Foram entregues cópias de um questionário semi- estruturado de uma página (com perguntas tanto abertas quanto fechadas), que foi elaborado para este trabalho, e foi dividido em três etapas distintas. Na primeira etapa, pediu-se que a (o) aluna (o) preenchesse algumas informações básicas de auto identificação. A segunda etapa buscava fazer um levantamento de algumas informações gerais pertinentes às preferências acadêmicas das (os) alunas (os), em relação às suas disciplinas escolares favoritas e às possíveis opções de cursos de Ensino Superior que pensavam em seguir no futuro. Finalmente, a terceira etapa foi especificamente dirigida ao âmbito científico e como as (os) respondentes o enxergam no que diz respeito à questão da representação feminina (se as (os) respondentes têm conhecimento de mulheres que fizeram/fazem parte da história da ciência) e estereótipos de gênero associados ao mesmo (questionando qual seria a imagem de estudantes acerca de uma pessoa que trabalhe como cientista).

Resultado e discussão

Foram analisados 77 questionários respondidos por estudantes de 5 turmas diferentes, do turno da manhã e da tarde. Para as questões que pediam um número específico de respostas, os discentes geralmente forneciam o menor número possível. Em relação às preferências acadêmicas das (os) respondentes, primeiramente foi pedido que escolhessem, a partir de uma lista de cursos de Ensino Superior divididos em Ciências Biológicas, Ciências Exatas e Ciências Humanas, 3 que apresentavam interesse em cursar. Segundo os resultados obtidos, observou-se entre as respondentes femininas uma preferência pelos cursos classificados como pertencentes à área das Ciências Humanas (46,0% das escolhas feitas pelas alunas participantes), seguida de cursos na área de Ciências Biológicas (33,0% das escolhas) e por último os cursos das Ciências Exatas (apenas 21,0% das escolhas). Entre os respondentes masculinos, foi observada uma preferência ainda maior por cursos na área das Ciências Humanas (49,0% das escolhas feitas pelos alunos participantes). Entretanto, observou-se uma inversão na preferência dos respondentes masculinos nas demais áreas, em comparação com as respondentes femininas. Constatou-se, neste caso, uma diferença quase que insignificante dos respondentes por cursos entre as demais áreas. A área das Ciências Exatas representou 26,0% das escolhas feitas pelos alunos participantes, enquanto que 25,0% das escolhas foram por cursos na área das Ciências Biológicas. Nota-se que a frequência de escolha por cursos das Ciências Humanas mostrou-se bastante similar entre meninos e meninas. De modo geral, apesar das preferências femininas se mostrarem de acordo com o esperado na literatura, os resultados para respondentes masculinos não refletiram a diferença significativa esperada em relação às preferências de respondentes femininas. Cursos que segundo os dados aqui apresentados seriam predominantemente masculinos, como Engenharia Civil, Informática e Ciência da Computação se mostraram populares, independente de gênero. Alguns cursos da área da Saúde (Enfermagem, por exemplo) culturalmente considerados femininos, de fato foram escolhidos mais frequentemente por respondentes femininas. Outros, como Nutrição e Psicologia, mostraram-se equilibrados entre homens e mulheres. Por fim, o curso de Pedagogia, indicado como o mais popular entre mulheres, foi citado apenas 1 vez por elas. Já em relação às preferências de respondentes em relação às disciplinas acadêmicas ofertadas no colégio, as (os) respondentes tiveram que escolher as 3 das que mais e menos gostavam. Os resultados não apresentaram uma diferença significativa entre meninos e meninas. Os gráficos A e B (Figura 1) apresentam respectivamente as disciplinas favoritas de meninas e meninos. Para as 29 respondentes femininas, temos que suas 5 disciplinas favoritas foram: História e Educação Física (cada uma escolhida por 48,3% das respondentes); Matemática (44,8%); Biologia (37,9%) e Português (31,0%). Já para os 48 respondentes masculinos, os resultados obtidos mostram que suas 5 disciplinas favoritas são: Geografia, (escolhida por 41,7% dos respondentes); Matemática (39,6%); História (37,5%); Educação Física (35,4%) e Português (31,3%). No outro extremo das preferências acadêmicas analisadas, os gráficos C e D (Figura 2) apresentam os resultados para as disciplinas das quais meninas e meninos indicaram gostar menos. No caso das respondentes femininas, os resultados mostraram que as 5 disciplinas das quais elas menos gostam são: Matemática, escolhidas por 16 respondentes (escolhida por 55,2% das respondentes); Física (41,4%); Química, (34,5%); Geografia (31,0%); e Português, (27,6%). Para os respondentes masculinos, temos que as 5 disciplinas das quais eles menos gostam são: Matemática (escolhida por 52,1% dos respondentes); Física (37,5%); Química (31,3%); Português (27,1%); e História (25,0%). Nota-se que os resultados aqui apresentados se mostram extremamente similares tanto para meninos quanto para meninas, sendo que dentre as 5 disciplinas mais mencionadas como as preferidas de respondentes masculinos e femininas, 4 são comuns a ambos os casos: História, Educação Física, Matemática e Português. Similarmente, as 3 disciplinas que os respondentes menos gostam foram exatamente as mesmas, tanto para meninos quanto para meninas: Matemática, Física e Química. Este resultado parece demonstrar que para este grupo específico de estudantes as disciplinas associadas às Ciências Exatas não são vistas de forma positiva na escola independente de gênero, ao contrário do que o estereótipo que as qualifica como ciências predominantemente masculinas parece sugerir. Olhando para a Química em particular, essa se mostrou bastante impopular entre as (os) respondentes, com apenas 8 (6 meninos e 2 meninas) citando-a como uma de suas disciplinas favoritas, em oposição a 25 menções (15 meninos e 10 meninas) como uma disciplina que menos gostam. Na seção referente às percepções de alunos em relação à ciência e à presença da mulher na ciência, os resultados refletem a documentada sub-representação feminina na mesma, bem como a invisibilização de suas contribuições à história da ciência. Pediu-se nesta etapa do questionário que as (os) respondentes indicassem nomes de cientistas que conhecessem, apenas uma mulher (Marie Curie) foi citada em todos os questionários avaliados, e apenas por três pessoas. Por outro lado, um total de 20 figuras masculinas foram citadas por respondentes. A maioria de respondentes não se mostrou capaz de citar um número significativo de cientistas em geral, muitos se limitando apenas a citar Albert Einstein e, com menos frequência, Isaac Newton. No total, 22 respondentes não foram capazes de citar o nome de qualquer cientista, representando quase um terço de respondentes. Por fim, a última seção do questionário solicitava às (aos) estudantes que descrevessem, por escrito, sua imagem da figura de quem trabalha como cientista e 12 respondentes optaram por não preencher esta parte do questionário. Assim como foi feito na seção anterior, utilizou-se uma linguagem neutra de modo a não influenciar as (os) respondentes a utilizar descritivos generificados em suas respostas. Os resultados obtidos indicam que a maioria de respondentes (aproximadamente 57,0%) manteve o uso de uma linguagem neutra, sem especificar um gênero específico para a profissão em suas descrições, não sendo observada uma diferença significativa entre meninos e meninas no uso deste tipo de linguagem. Isto parece sugerir a utilização do mesmo tipo de linguagem na proposta da atividade em si e, potencialmente, um sinal promissor no combate a perpetuação de estereótipos de gênero na ciência. Por outro lado, aproximadamente 43,0% de respondentes utilizaram algum tipo de linguagem generificada em suas descrições e, novamente, a proporção de meninos e meninas a empregar este tipo de linguagem foi similar. Entretanto, é interessante notar que das 11 mulheres a utilizar linguagem generificada em sua descrição, 2 (aproximadamente 18,0%) optaram por se referir a imagem de cientista como uma mulher, o que não foi feito por nenhum dos respondentes masculinos. Considera-se relevante ressaltar que um número significativo de respondentes ainda parece associar cientistas à imagem de homens famosos na área, em especial Einstein. Ao longo das respostas analisadas foram observadas inúmeras menções a pessoas brancas e de idade mais avançada, com cabelos “brancos”, “bagunçados” ou “descabelados”, ou, ainda, aparência de “louco” ou “maluco”.

Figura 1. Perfil discente das disciplinas que mais gostam.

Os gráficos A e B apresentam os resultados para as disciplinas que meninas e meninos indicaram gostar mais, segundo os questionários analisados.

Figura 2. Perfil discente das disciplinas que menos gostam.

Os gráficos C e D apresentam os resultados para as disciplinas que meninas e meninos indicaram gostar menos, segundo os questionários analisados.

Conclusões

Os padrões identificados na literatura aqui apresentada tenderam a se repetir a nível de Ensino Médio e a sub-representação feminina nas Ciências Exatas se refletiu na incapacidade da grande maioria de respondentes do questionário de citar cientistas femininas das quais tenham conhecimento. Esta realidade apenas reproduz e fortifica o estereótipo ainda prevalente na nossa sociedade de que a produção científica é uma atividade masculina. Por outro lado, também foram identificados sinais positivos no estudo de caso realizado. A utilização de uma linguagem neutra por parte da maioria de respondentes ao descrever como enxergam a figura de cientista, após o mesmo ter sido feito no enunciado da atividade, representa um escape dos estereótipos associadas a esta imagem e um sinal promissor para o futuro. Tendo em vista os diversos estudos já publicados sobre os efeitos negativos da baixa representatividade de mulheres no campo científico e dos estereótipos de gênero que dificultam o acesso e permanência de mulheres nas ciências duras (HEWLETT; LUCE; SERVON et al., 2008; HILL; CORBETT; ROSE, 2010; CORBETT; HILL, 2015; AMERICAN ASSOCIATION FOR THE ADVANCEMENT OF SCIENCE, 2010; e outros), é fundamental que estes problemas sejam minimizados, começando pelo modo como introduzimos e representamos as ciências no ambiente escolar. Finalmente, uma sociedade sem limitações impostas por estereótipos de gênero torna-se mais livre, igualitária e produtiva. Como profissionais de ensino de química, vemos, ainda, uma grande lacuna no que diz respeito à abordagem de questões humanas e de relevância social na formação de futuros professores na área. Para se desfazer os estereótipos de gênero e, de fato, impulsionar uma melhor representatividade das mulheres nas ciências exatas, estas questões precisam ser abordadas não apenas em sala de aula com as (os) estudantes, mas também de maneira transversal ao longo da formação dos profissionais da educação e na sociedade como um todo.

Agradecimentos

As autoras agradecem à direção do Colégio Estadual Antônio Prado Junior por ter permitido a realização do estudo de caso na instituição.

Referências

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CORBETT, C.; HILL, C. Solving the equation: the variables for women’s success in engineering and computing. Washington: AAUW, 2015. 159 p.

HEWLETT, S. A. et al. The Athena factor: reversing the brain drain in Science, Engineering, and Technology. Boston: Harvard Business School Publishing, 2008. 109 p.

HILL, C.; CORBETT, C.; ROSE, A. Why so few? Women in Science, Technology, Engineering and Mathematics. Washington: AAUW, 2010. 134 p.

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PATTON, M Q. Qualitative research & evaluation methods. 3. ed. Thousand Oaks: Sage Publications, 2002.

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