Autores

Ferreira, R. (IFRJ NILÓPOLIS) ; Magalhaes, V. (IFRJ NILÓPOLIS)

Resumo

Este trabalho tem o objetivo de discutir as contribuições do método de ensino Estudo de Caso para a construção do conhecimento científico a partir da acomodação de novos conhecimentos à estrutura cognitiva, internalização dos conceitos, capacidade de articular os conhecimentos internalizados entre si, capacidade de relacionar o conhecimento químico com a realidade e autonomia na realização de atividades. As contribuições do uso do Estudo de Caso permeiam o papel da contextualização, interdisciplinaridade, aprendizagem colaborativa, do estímulo ao comportamento investigativo e da interação entre o sujeito, o objeto de estudo e o ambiente. Para isso contam com o papel ativo do aluno em sua aprendizagem e com atividades que promovam motivação e significação dos conteúdos estudados.

Palavras chaves

Estudo de caso; Articulação dos conceitos; Ensino-aprendizagem

Introdução

O ensino tem por objetivo o desenvolvimento mental do aluno. Isso envolve a capacidade de criar representações abstratas, observar, criticar, resolver problemas, dentre outras coisas. O que é muito diferente dos métodos tradicionais de ensino, que enxergam o aluno apenas como um receptor passivo das informações. Os métodos pedagógicos habituais geralmente não estimulam a capacidade do aluno de raciocinar através da lógica nos contextos de indução (realizando observações, julgando-as e propondo hipóteses através delas) e de dedução (analisando e refletindo sobre as situações, e chegando a conclusões através de suas próprias concepções) DEWEY, 1950 apud TIBALLI. Faz-se necessário desenvolver e aplicar novos métodos de ensino para submeter o aluno à experiências onde são articulados os conhecimentos científicos e as situações da realidade que, de acordo com MACHADO (2004) apud WARTA (2013) é chamado de contextuação. Para que ocorra de modo apropriado e obtenha resultados proveitosos na aprendizagem, a contextuação (conhecida em outras referências como contextualização) não pode ser confundida com exemplificação, que apenas estabelece relações superficiais. Inserir o aprendiz no contexto do assunto trabalhado requer uma relação que o possibilite problematizar a situação, analisando-a em proporção holística1, e fazendo relações com implicações sociais, ambientais e políticas (WARTA 2013). O método de ensino estudo de caso pode fazer várias contribuições para a construção consistente do conhecimento. SÁ, et al. (2007) enuncia que o estudo de caso, muito utilizado em cursos de formação de profissionais da saúde, é uma variação do método Problem Based Learning (PBL) ou Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP) que teve origem há aproximadamente 30 anos atrás em uma universidade no Canadá. O uso do estudo de caso vem crescendo no ensino da química visto que pode promover a aprendizagem colaborativa, significação dos conceitos através de situações reais, estimular a abordagem investigativa e, ainda, auxiliar na internalização dos conceitos. É importante ressaltar que a criação de personagens na história relatada é importante para conquistar a empatia do leitor, fazendo com que ele se sinta inserido no contexto do caso, e seja motivado a resolver os dilemas. Segundo AUSUBEL (1968) apud FILHO (2013), a construção do conhecimento se dá através das relações que o indivíduo consegue estabelecer entre as informações recém-adquiridas e o conhecimento prévio. Ideia que também foi desenvolvida por Piaget por volta de 1921 (apud TERRA) com o conceito de epigênse que afirma que o processo evolutivo da cognição humana ocorre através da interação com o meio ambiente que ativa formas apriorísticas2 de consciência inerentes ao indivíduo. Nesse contexto, o processo de ensino-aprendizagem deve atribuir significado aos objetos de estudo, enfatizando a identificação entre eles e o aprendiz. Isso auxilia a estabelecer uma interação eficiente, o que fomenta o desejo pelo conhecimento. Através de uma abordagem contextualizada, onde os eventos do cotidiano são articulados com o conhecimento científico, o estudo de caso pode ser utilizado no ensino de química para proporcionar a significação necessária à construção do conhecimento, pois permite que o aluno perceba as conexões entre o conhecimento científico e a realidade. O estudo de caso é uma maneira de romper os obstáculos da abordagem interdisciplinar. Os problemas de uma situação cotidiana, mesmo que fictícia, não estão restritos às divisões das disciplinas feitas pelo ser- humano. A realidade não se limita a nenhum conhecimento específico. Com isso, para solucionar problemas em um estudo de caso, o indivíduo precisa atravessar os conteúdos que aprendeu de forma isolada, localizando pontos em que se conectam. Com isso, o professor precisa mediar esta investigação para atingir a Zona de Desenvolvimento Proximal (VYGOTSKY apud FINO, 2001) do aluno, que foi gerada pelo próprio estudo de caso. Nessa situação, seu desenvolvimento real (caracterizado pelas atividades que podem ser realizadas de forma independente) compreende os conteúdos fragmentados que aprendeu, e sua zona de desenvolvimento potencial (atividades que estão próximas da autonomia, mas ainda precisam da orientação de alguém mais experiente) está no âmbito das conexões que ele precisa fazer. A ZDP é a distância entre esses dois níveis de desenvolvimento. O estudo de caso é uma ótima ferramenta para o aluno realizar papel ativo em sua própria aprendizagem. Deste modo, é possível promover uma educação reflexiva e libertadora, formando sujeitos conscientes, críticos e autônomos. 1 holística: alguma coisa relacionada ao entendimento integral dos fenômenos, sem especificar cada evento e desconsiderar o todo. 2 apriorístico: relativo à uma convicção intelectual de que a mente humana possui conhecimentos, princípios, ideias e raciocínios que existem independente da experiência, existem a priori.

Material e métodos

Em uma turma de ensino médio integrado ao curso técnico em química do IFRJ/Nilópolis com 28 alunos do 1º semestre letivo foi aplicado um estudo de caso com a intenção de, simultaneamente, avaliar e promover a aprendizagem. O professor relatou a seguinte história para os alunos: "Meus pais foram fazer compras no mercado. Quando retiraram os produtos das sacolas, ao chegar em casa, notaram que as garrafas de óleo de soja tinham vazado sujando as embalagens de outros produtos. Tiveram a ideia de utilizar um agente de limpeza a seco que continha tetracloreto de carbono (CCl4) que pareceu retirar boa parte do óleo, mas os produtos ainda ficaram com aspecto um pouco gorduroso. Posteriormente, minha mãe lavou as embalagens dos produtos com detergente, e percebeu que elas ficaram completamente limpas. Nossa cadela de estimação que estava próximo aos produtos durante o uso do agente de limpeza adoeceu, sendo diagnosticada, posteriormente, com hepatite tóxica." Em seguida, o professor solicitou que os alunos que se dividissem em grupos, transcrevessem o relato, e justificassem, quimicamente, o motivo do agente de limpeza ter retirado boa parte do óleo, o motivo da lavagem com detergente ter limpado as embalagens por completo, e o que causou a hepatite tóxica na cadela, explicando em que consiste a doença e qual tratamento é indicado. O professor recomendou a pesquisa em livros e materiais impressos, e liberou a pesquisa na internet, através dos dispositivos móveis pessoais dos alunos. Foi verificado que cada grupo possuía pelo menos um dispositivo de busca, para garantir que todos teriam acesso às mesmas oportunidades. Quando os alunos registram suas avaliações através da escrita, o professor tem a possibilidade de analisá-las individualmente, dando a oportunidade para que todos externem suas ideias e concepções, diferente do que acontece nas discussões orais, onde alguns alunos se expressam mais do que outros, por questões de inibição. É importante ressaltar o uso do estudo de caso como método avaliativo. LUCKESI (1998) apud BRITO (2012) indica que a habitual atribuição de notas aos alunos gera uma cultura de fracasso e derrota, onde o aluno só se preocupa em atingir o número necessário, assim desenvolve um hábito de memorização superficial ao invés de construir o conhecimento. No horário combinado o professor recolheu os textos produzidos pelos alunos, e perguntou para eles o que tinham respondido. Durante o diálogo, foi aberta uma discussão para toda a turma. O professor foi destacando as respostas dos alunos e construindo as justificativas para cada etapa do caso. Os conceitos trabalhados foram polaridade das moléculas e solubilidade. O professor falou sobre a regra geral de solubilidade, e a polaridade particular da molécula de sabão, que explicava o fato da lavagem final ter deixado os produtos completamente livres do óleo. O uso do Estudo de Caso precedeu o assunto "geometria molecular".

Resultado e discussão

Quando o professor anunciou que iria fazer uma atividade diferenciada os alunos demonstraram muita empolgação. Durante o relato, eles fizeram vários comentários e questionamentos sobre a história, mostrando-se totalmente envolvidos com o caso. Por mais que soubessem que se tratava de uma atividade com caráter avaliativo, a maioria dos alunos acreditou que a história era verídica, desconfiando apenas no fim do relato, quando o professor solicitou que eles justificassem os fenômenos com base nos conceitos químicos aprendidos até então. O momento em que foi relatada a intoxicação do animal de estimação provocou uma grande comoção na turma, e pareceu ser o ápice do estímulo para conquistá-los a resolver os problemas. Os alunos discutiram dentro de seus grupos e, frequentemente, faziam perguntas ao professor, que fornecia pistas e estimulava o raciocínio dos alunos para oferecerem respostas adequadas. Eles também consultaram seus cadernos, livros e smartphones para pesquisar sobre a hepatite tóxica. Na discussão que sucedeu a entrega dos textos, os alunos aprenderam muito uns com os outros, e com o professor, pois todos tiveram oportunidade de expor suas ideias. Quando realizado em grupo, o estudo de caso valoriza a forma colaborativa da construção do conhecimento, onde os alunos podem expor, analisar e criticar suas próprias hipóteses a fim de propor a solução mais adequada para os problemas do caso. A aprendizagem colaborativa parte da ideia de que o conhecimento é resultante de um consenso entre membros de uma comunidade de conhecimento (TORRES, 2004). Este conceito é o motor da metodologia de ensino peer instruction que, segundo ARAUJO (2017) possui os objetivos de explorar a interação entre os estudantes e focar sua atenção nos conceitos fundamentais para a resolução de questionamentos propostos em sala, que foi exatamente o ocorrido durante a atividade. O estudo de caso possibilitou que toda a turma pudesse agir como uma comunidade científica, primeiramente debatendo em pequenos grupos, e depois expondo e debatendo suas ideias com toda a comunidade. O conceito de excedente de visão (BAKHTIN, 2003 apud GONÇALVES, et al., 2008) complementa a aprendizagem colaborativa de forma que o ponto de vista de um indivíduo complete a observação do outro sem retirar sua originalidade, desde que os dois entrem em empatia mutuamente. Ao comparar as produções de texto com as falas dos alunos durante a discussão oral, pôde-se verificar uma sofisticação dos termos, dos conceitos e das justificativas na discussão, um indício de que a aprendizagem foi enriquecida através da colaboração. Entretanto, a maioria dos grupos já havia conseguido identificar, antes da discussão geral, as soluções para os problemas. A maioria das respostas estava completa, explicando detalhadamente cada etapa do processo de limpeza das embalagens. Eles tiveram facilidade para relacionar a polaridade com a solubilidade, e o papel intermediário do detergente que consegue interagir com moléculas de ambas polaridades. Vale lembrar que no momento da elaboração textual também estava presente a colaboração entre os próprios membros do grupo. O Estudo de Caso estimula o aluno a problematizar as situações e criar hipóteses a partir de seus conhecimentos prévios, possibilitando que utilize os conhecimentos adquiridos em problemas reais, o que auxilia na aquisição das competências e habilidades previstas no PCNEM. Neste documento, é reforçada a ideia de que o conhecimento químico precisa estar relacionado com o mundo ao redor do aluno. Isto é muito importante para promover identificação entre o sujeito e o objeto de estudo, fazendo com que o aluno enxergue significado nos conceitos que aprende. No que se refere ao desenvolvimento de habilidades atitudinais do ensino (ZABALA, 2010 apud UEHARA, 2005), que estão relacionadas com o desenvolvimento de atitudes a partir dos conceitos, a aplicação de estudo de casos fornece condições para o aluno intervir em sua realidade (pensamento de Paulo Freire). Não é interessante quando o aluno conclui o ensino médio sem entender a importância e a abrangência que a química representa na realidade. Principalmente o aluno que realiza o curso integrado de técnico em química, que não pode "se perder" em meio a tantos conhecimentos conceituais, sem que reflita sobre as implicações na sociedade, no meio ambiente, na tecnologia e até mesmo em sua vida pessoal. UEHARA (2005) completa afirmando que quando o conhecimento químico é apresentado pronto para o aluno, há facilidade de desenvolvimento dos erros conceituais, pois não demonstra o caminho percorrido até a obtenção deste resultado. Isto gera no aluno uma impressão equivocada de que a ciência está pronta, não é passível de mudanças e é incontestável. Outro problema da disponibilização imediata do conhecimento é o prejuízo que traz para o processo que Vygotsky chama de internalization (internalização), que consiste na capacidade de reconstrução interna de operações externas (FINO, 2001). Para que o indivíduo consiga reconstruir um conceito em sua mente, é necessário que tenha contato com as estruturas que o compõem, as relações que faz com outros conceitos (que o aluno já conhece) e o significado em seu cotidiano. A aplicação do estudo de caso ajuda a vencer esses problemas, visto que necessita da interpretação de eventos comuns da vida diária, onde o aluno é submetido a situações que desafiam seu conhecimento prévio, o que exige uma posterior acomodação dos novos conhecimentos para que a mente realize o processo de equilibração, retratado na teoria construtivista de Piaget como o equilíbrio após o contato do indivíduo com o novo conhecimento, que promove a geração de instabilidade cognitiva, seguida da assimilação e acomodação desse conhecimento na estrutura mental individual existente (FREITAS apud TERRA 2000). Uma questão importante é que a interação entre o sujeito, o objeto de estudo, o ambiente e as pessoas nele presentes é o fator que promove o descobrimento de novas ideias que desequilibram a base teórica pré-existente. No estudo de caso, os conceitos aprendidos se tornam ferramentas para resolver os dilemas do caso, o que faz com que o aluno perceba a importância do conteúdo que estudou ao estabelecer, ele mesmo, uma aplicabilidade útil para tal. Sob outro ponto de vista, a própria aplicação desses conceitos no caso viabiliza o processo de internalização, ao exigir que o aluno tenha consolidado o conhecimento para então articular, de maneira autônoma, com as questões do caso. Mesmo no aluno que ainda não possui alguns conceitos enraizados, o estudo de caso promove momentos de reflexão individual que ocasionam a interiorização. Outra contribuição incomensurável do estudo de caso é o estímulo à investigação. Por apresentar situações com problemas relevantes, encorajar os alunos a formularem explicações e hipóteses a partir das evidências relatadas, propiciar discussões em grupo por meio da mediação do professor, o estudo de caso é uma atividade com características de abordagem investigativa, determinadas por HERMAN (1999) e VOLKMAN e ABEL (2003) apud FERREIRA, et al. (2009). Submeter o aluno a "projetos de investigação" estimulam sua curiosidade e o desenvolvimento da atitude crítica ao confrontar resultados e questionar as informações recebidas (LEWIN e LOMASCÓLO, 1998 apud FERREIRA, et al., 2009). Durante a investigação do caso o aluno tem a oportunidade de combinar os conteúdos conceituais, procedimentais (investigar, manipular e comunicar) e atitudinais (POZO, 1998 apud FERREIRA, et al., 2009).

Conclusões

As novas tendências pedagógicas apontam para a resolução dos problemas de ensino-aprendizagem identificados na pedagogia liberal tradicional, que enxergam o aluno apenas como um receptor passivo das informações. Métodos de ensino atuais consideram o interesse do educando, defendido por John Dewey em 1954, deixando claro que a significação dos conteúdos abordados para o aluno é um grande elemento motivador. BZUNECK (2009) apud MORETTI (2009) esclarece que o aluno não é o único responsável pela sua falta de motivação. Portanto, o papel do professor como mediador daquele conhecimento é explorar o interesse do aluno, e a metodologia de ensino estudo de caso cumpre importante papel nesse cenário. Ao analisar os impactos de sua aplicação na construção de conhecimento nos alunos, foram verificados vários benefícios. Os alunos se sentiram motivados a pesquisar, expor suas hipóteses e argumentarem uns com os outros. A atividade foi de grande importância para promover identificação dos alunos com a química, pois eles puderam perceber que os conceitos estudados anteriormente faziam parte da realidade, e que o indivíduo conhecedor dos conceitos é capaz de resolver problemas que podem surgir na vida diária, trazendo contribuições para a sociedade. Em virtude das características do estudo de caso, a aprendizagem se torna significativa, tendo em vista que a memorização característica da aprendizagem superficial não é suficiente para que o aluno proponha soluções para os problemas do caso. Ter os conhecimentos bem consolidados é apenas um pré-requisito para conseguir raciocinar, associar os conceitos, e chegar ao resultado. Não existe um livro com as respostas para todos os problemas que podem surgir na vida cotidiana. Por esse motivo, o aluno precisa desenvolver a capacidade de pensar. A aplicação dessa atividade como avaliação enriquece a análise do professor, que se torna muito mais abrangente através da possibilidade de avaliar o processo de construção do conhecimento no aluno

Agradecimentos

Ao IFRJ Nilópolis e aos alunos que colaboraram com suas respostas

Referências

ARAUJO, A. V. R., et al. Uma associação do método Peer Instruction com circuitos elétricos em contextos de aprendizagem ativa. Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 39, nº 2, e2401: 2017.
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MORETTI, Jecione dos Santos. Motivação para a aprendizagem na escola: uma proposta de intervenção na atuação de professores em formação continuada. Governo do Estado do Paraná: 2009.
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TORRES P. L., et al. Grupos de consenso: uma proposta de aprendizagem colaborativa para o processo de ensino-aprendizagem. Curitiba: Revista Diálogo Educacional, p.129-145: 2004.
TRINDADE, Inêz Leal e CHAVES, Silvia Nogueira. A Interdisciplinaridade no “novo ensino médio”: entre o discurso oficial e a prática dos professores de ciências. Universidade Federal do Pará.
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