Autores
Martinhon, P.T. (UFRJ) ; Rocha, A.S. (UERJ) ; Sousa, C. (UFRJ)
Resumo
Com vistas a estimular o exercício da elaboração e discussão de memoriais acadêmicos, alunos do curso de Licenciatura em Química da UFRJ foram convidados a escrever um memorial acadêmico dentro de seu trabalho de conclusão de curso. O presente trabalho apresenta uma análise dialógica sobre o papel destes sob o ponto de vista de referenciais teóricos epistemológicos previamente estabelecidos. Verificou-se que os discentes, em linhas gerais, abordaram questões relevantes para a formação docente que puderam ser divididas em oito categorias: família, sonhos, ensino médio, lutos, empatia, tema do TCC, por vir docente e resiliência. A análise ressaltou a importância dos aspectos pessoais nas escolhas profissionais dos futuros professores, que foram decisivas em todos os memoriais investigados.
Palavras chaves
Memorial; Formação Docente; Licenciatura em Química
Introdução
No Brasil, a carreira de pesquisador se encontra geralmente atrelada a uma docência, e não somente às competências específicas de cada área de atuação. Contudo, nem todo pesquisador universitário tem uma formação pedagógica (BRAGA, 2018). Mas afinal, quais são as competências esperadas para um docente? E como fazer a avaliação de tais atribuições? De fato, a avaliação de tais competências é uma tarefa difícil frente aos diferentes ramos do saber que mesclam objetos, teorias, métodos e técnicas, para produzir novas formas de contemplar a realidade (TAMIASSO-MARTINHON et al., 2017). Além disso, “O conhecimento regulado pelo capital tem conduzido a sociedade mundial e a humanidade, produzindo a divisão do mundo em dois mundos, polarizando-os no mundo dos possuidores e no mundo dos possuídos” (FERREIRA, 2009). Nesse contexto hodierno, o mercado anseia por quantificar competências complexas, na tentativa de avaliar uma trajetória acadêmica, e, em consequência, selecionar o que nessa filosofia se acredita serem os melhores candidatos no conjunto (MELLO et al., 2010; STREHL, 2005; SANT'ANNA, 1999). Segundo Teixeira (2007) a docência se instaura na relação social entre docente e discente. O que não é necessariamente uma prerrogativa docente, uma vez que o conhecimento de maneira ampla – e não apenas o científico – só ganha sentido a partir da relação entre sujeitos socioculturais, imersos em universos distintos de historicidade e cultura, implicando em enredos individuais e coletivos (SOBRINHO, 2008). O que em outras estâncias também implica em um autoconhecimento de Si (PINO, 2018). Assim, para que se entenda realmente o contexto docente contemporâneo, talvez seja essencial uma compreensão das mediações dos pilares que fundaram a condição na qual um sujeito se torna professor-pesquisador aprendente (ARAÚJO, 2015). Nesse sentido, algumas pesquisas apontam a importância de se registrar na introdução de textos acadêmicos, seja na forma de apresentação ou memorial, a trajetória de formação do profissional (BONARDO, 2010). No contexto de Concursos Públicos Brasileiros para o provimento de vagas destinadas, por exemplo, a Professores Universitários de Instituições Públicas ou Privadas, se constrói uma aproximação ao candidato por meio da apresentação obrigatória de dois sinalizadores da sua vida acadêmica: o curriculum vitae e o memorial (CONSUNI, 2016; BONINI, 2009). Talvez esse seja o indício da confusão conceitual que pode ser notada entre os dois documentos (ALVES et al., 2014; CANDIDO et al., 2016; SANTOS et al., 2010). A elaboração do primeiro é uma contingência de todo aquele que queira prosseguir na carreira acadêmica. O contato se faz cedo, ainda na iniciação científica, quando o curriculum passa a ser escrito e reescrito, aprimorando-se conforme se galga a maturidade científica. Já para a elaboração do memorial, acredita-se que seja relevante o conhecimento das condições em que foi realizada a formação acadêmica, bem como as circunstâncias que predominaram nos momentos mais relevantes dessa trajetória. Além de autoavaliativo, o memorial pode, e às vezes se espera que apresente, um caráter confessional, portanto subjetivo (PASQUALOTTI, passim). Isto porque o contexto de vida, de trabalho, de formação e capacidade de quem constrói uma trajetória científica é muito variado, e como uma consequência, vivido de um modo extremamente diferenciado. Tais aspectos, relacionando situações e contingências que envolveram a realização dos trabalhos, precisam ser considerados. Nessa perspectiva, o presente trabalho é um convite para discussão do papel do memorial formativo, como ferramenta de promoção sistêmica do empoderamento de licenciandos em química – consequentemente no seu por vir docente - bem como para questionar o papel dos memoriais no processo de avaliação dentro de uma perspectiva neoliberal. O trabalho dialoga com o pensamento de Minayo (2007) e Heidegger (1989). A primeira concebe por pesquisa a atividade básica da Ciência na sua indagação e construção da realidade, consequentemente de tudo o que corrobora para a edificação da mesma. Para essa autora a pesquisa alimenta a atividade de ensino, e vice-versa, atualizando os envolvidos frente à realidade prática e ética de mundo. Ou seja, se por um lado a pesquisa é uma prática teórica, ela vincula pensamento e ação, e outro, a ação pertinente a prática docente embasa o diálogo da primeira (MINAYO, 1993). Já a escolha da autobiografia, inerente aos memoriais, como instrumento de coleta de dados, dialoga com Heidegger (1989). Segundo esse autor, a palavra experiência diz respeito aquilo que o ser humano apreende do, e no, lugar que ocupa no mundo, e no interior das ações que realiza. Assumindo essa linha de raciocínio, encaramos nossa pesquisa, acima de tudo, como uma contextualização do por vir docente em questões inerentes ao cotidiano de cada um.
Material e métodos
O desenho metodológico da pesquisa assume um contorno qualitativo, tendo como base, o entendimento das experiências e vivências dos sujeitos de pesquisa, a partir da análise de narrativas reflexivas sobre trajetórias acadêmicas, presentes em trabalhos de conclusão de cursos, de egressos de cursos de Química. Partimos dos trabalhos de conclusão do curso de Licenciatura em Química da UFRJ, tanto na modalidade presencial quanto na semipresencial, orientados dentro do escopo específico de um grupo de ensino, pesquisa e extensão, pertencente a mesma instituição, durante o período de 2013-2017. Para a criação de um memorial, há consenso sobre a relevância das condições em que foi realizada a formação acadêmica. O memorial pode ser definido como registro das histórias de aprendizagem e das suas influências. O ser humano é um contador de histórias que extrai sentido do mundo através de narrativas, o que sugere que a percepção de si adquire significado à luz do vivido. Experiências de vida, ao lado do ensino formal, concorrem para a construção de saberes científicos, religiosos, sociais, dentre outros. Estes, não raro, refletem crenças, atitudes, emoções, motivações e valores - individuais e coletivos - e se apresentam como elementos importantes à percepção dos sujeitos acerca, por exemplo, de fenômenos psicossociais, socioambientais e biológicos. A falta de clareza sobre o que se espera do candidato, não raro leva a distorções na etimologia da palavra, memorialis, compreendida como a semântica que orbita as memórias de cada um, moldadas a partir da vivência de instituições clássicas: família, escola, mídia, estado, ciência, igreja; em uma constante relação de forças. Tais variáveis repercutem nas escolhas profissionais, tornando interdisciplinares, e mesmo multidisciplinares, as consequências de cada escolha. Essa complexidade aponta para a necessidade de avaliações mais contextualizadas dos candidatos. Contudo, tal medida abre brechas para justificar resultados que podem anteceder a própria avaliação. Em certos contextos locais pode ocorrer um julgamento nem sempre acadêmico e científico, capaz de pretextar uma desvalorização intelectual decorrente de uma análise pessoal. Nesta perspectiva, este artigo propõe uma análise dialógica sobre o papel dos memoriais acadêmicos, principalmente em áreas sem esta tradição. A metodologia apresenta viés epistemológico qualitativo, nível descritivo, delineamento autobiográfico. A apresentação dos resultados envolve uma análise das monografias propriamente ditas, em que o instrumento de coleta de dados utilizado foi o registro autobiográfico presente nos memoriais. A partir desses dados, e a luz dos referenciais teóricos com quem dialogamos, identificou-se oito categorias, teóricas ou empíricas, de ideias centrais contidas nos memoriais analisados, marcando a construção dos profissionais em questão (ORLANDO, 2013; ALMEIDA, 2016; OLIMPIO, 2016; GONÇALVES, 2016; BARBOZA, 2017; ORNELLAS, 2017).
Resultado e discussão
Na média cada memorial continha quatro laudas. As oito categorias que foram trabalhadas são: (1) família, (2) sonhos, (3) ensino médio, (4) lutos, (5) empatia, (6) tema do Trabalho de Conclusão de Curso - TCC, (7) por vir docente e (8) resiliência. Ideia central da categoria 1 (família): apoio, presença, intervenções e opiniões da família colaboram para o por vir profissional. Referências à família e amigos estão sempre presentes nos relatos dos alunos. Entre as falas destacamos a de Orlando (2013) “meus pais me matricularam em um colégio particular”, a de Gonçalves (2016) “conversei com minha mãe sobre a questão, pois ela é uma pessoa muito sábia, ela sugeriu que eu procurasse uma escola técnica, com ênfase em química, pois o mesmo também me possibilitaria entrar no mercado de trabalho” e a de Olimpio (2016) “sempre estudei por vontade própria, nesse quesito não dei trabalho aos meus pais”. Ideia central da categoria 2 (sonhos): Entre as falas destacamos a de Olimpio (2016) “lembro-me que desde pequena queria fazer faculdade, mesmo sem saber o real significado de tal ação”, Gonçalves (2016) “meu interesse pela química surgiu durante o ensino médio” e Almeida (2016) “quando tento analisar minha trajetória escolar pensando em tudo o que passou, percebo que meu interesse por química surgiu já no último ano do Ensino Médio, a partir de explicações de química orgânica recebidas de uma amiga da mesma classe”. Ideia central da categoria 3 (ensino médio): Entre as falas destacamos a de Orlando (2013) “no ensino fundamental estava em uma instituição estadual e que nesse período a escola passou por muitos problemas” e Almeida (2016) “não consigo sequer lembrar de aulas de química em outras séries pois era tudo muito mecânico e, portanto, não possuía tanto significado para mim”. Ideia central da categoria 4 (lutos): Entre as falas destacamos a de Gonçalves (2016) “qual não foi minha surpresa ao constatar que eu não tinha o preparo suficiente para realizar a tal avaliação (ENEM) e Orlando (2013) “dentre todas as disciplinas, a mais complicada, que chegou a me arrancar lágrimas e gerar desespero, foi a química. Não conseguia entender a matéria de forma alguma, era tudo muito diferente do que havia aprendido no colégio anterior”. Ideia central da categoria 5 (empatia): Entre as falas destacamos a de Almeida (2016) “um grupo muito especial chamou a minha atenção: eram alunos do ensino fundamental e todos cegos. Foi um desafio muito grande tentar responder a todos os questionamentos que eles apresentavam”. Ideia central da categoria 6 (tema do TCC): Entre as falas destacamos a de Orlando (2013) “quando chegou o momento de escolher o assunto de minha monografia, decidi falar sobre inclusão. Muito se deu na verdade do desejo de incorporar tais métodos em minha atuação didática. No início tive receio de partilhar minhas ideias com os professores, qual não foi minha surpresa ao descobrir que muitos já estavam engajados na temática”, de Almeida (2016) “essa era a motivação que eu precisava e desta forma aconteceu a escolha e delimitação do tema da minha pesquisa, de forma natural, sem que eu buscasse. O incômodo e a inquietação que eu senti naquele dia me motivaram a escrever sobre a educação inclusiva, especificamente voltada para as pessoas com deficiência visual” e de Gonçalves (2016) “uma vez perguntei a um aluno o motivo dele não gostar da disciplina e este respondeu: - Não vejo utilidade nesta coisa de química, não sei onde vou usar isso que estou copiando”. Ideia central da categoria 7 (por vir docente): Entre as falas destacamos a de Orlando (2013) “Fazer esse trabalho foi algo que eu não poderia imaginar quando ingressei na universidade. Falar, e até mesmo pensar, sobre pessoas com necessidades específicas (PNE) era algo completamente fora do escopo da minha vida. [...] foi a partir desta experiência que reavaliei antigas certezas e comecei a nutrir o real desejo de lecionar, de fazer alguma diferença e ser uma facilitadora no aprendizado e na inserção de PNE no âmbito do ensino de química, de Almeida (2016) “a educação inclusiva nunca havia passado pela minha mente, como uma possibilidade de tema para meu trabalho de conclusão de curso, mas a forma como esse assunto chegou a mim foi sem dúvida especial, quebrando paradigmas e provando mudanças pessoais e profissionais, surgia em mim uma nova forma de enxergar a educação”. Ideia central da categoria 8 (resiliência): Entre as falas destacamos a de Almeida (2016) “O curso nunca foi fácil. Por ser da primeira turma de licenciatura em química, as dificuldades eram ainda maiores e sempre surgiam mais. Já no início, devido à complexidade do curso, muitos colegas trancaram, e ao longo do curso vi outros tantos abandonarem ou mudarem de instituição”. Em seguida, será apresentada uma discussão sobre o neoliberalismo acadêmico, que corrobora com a análise obtida. Neoliberalismo Acadêmico: O contexto das avaliações (STREHL, 2005) e dos avaliadores (BOTOMÉ, 2011) - sejam eles memoriais ou laudos periciais, pareceres técnicos ou consultorias ad hoc para revistas científicas, órgãos de fomento ou qualquer outro tipo de agência ou modalidade de avaliação, aparece como um conjunto de comportamentos humanos, como quaisquer outros (SCHMIDT, 2011). Logo, múltiplos determinantes e características também podem se combinar em diferentes graus: dimensões técnicas, físicas, sociais, econômicas, éticas, financeiras, políticas e até pessoais. O que poderia nos conduzir, e induzir, a confundir uma avaliação fundamentada e pública, com mera opinião ou julgamento passional de alguém sobre um assunto, trabalho, objeto, desempenho ou situação existente (BOTOMÉ, 2011). O problema, quando se trata de apreciar subjetivamente o trabalho intelectual de alguém, quanto a tais avaliações, está no fato de que essas podem causar efeitos perversos, e muitas vezes devastadores, já que o que estará em jogo será a reputação intelectual do pesquisador exposto ou mesmo a possibilidade ou não de acesso a verbas e oportunidades. Isso se torna ainda mais sério se, circunstancialmente, o avaliador for um concorrente, adversário, colega ou amigo, que pode se prejudicar ou se beneficiar de acordo com o resultado da avaliação. Botomé (1997) ressalta que as dimensões éticas de um parecer são importantes para caracterizá-lo coerentemente com suas consequências sociais. Ou seja, avaliar e comentar um trabalho, ou algum tipo de registro, não é dar um palpite inconsequente. Há que se ter em mente que produzir prejuízos ou impedir outros de obterem benefícios, é tão lesivo quanto apenas buscar o próprio benefício, já que o meio científico também está inserido em um domínio político. Este, por sua vez, se origina em interações sociais, presentes no cenário nacional e internacional da vida em comum, levando a condição de pesquisador-docente a um contexto instável, inacabado e de constantes mudanças, cujos resultados não refletem somente as competências do candidato. Tal aproximação acaba fazendo dos concursos também eventos de ordem política, portanto, esse contexto pede padrões mais rigorosos e transparentes. A avaliação do trabalho acadêmico precisa ser revista e aprofundada, antes que muitos grupos de pesquisa se tornem uma miríade de seitas hegemônicas, que se autodenominam os detentores de um saber pré-indexado, segundo interesses muitas vezes internacionais, não tolerando nada que não seja coerente com aquilo que preconizam, ou pior, considerando que as outras abordagens são seitas, e que estão erradas por princípio (BOTOMÉ, 2011). Assim, o uso de memoriais nas avaliações de quem inicia um percurso longo, como o acadêmico, e, consequentemente, ainda não instituiu memórias relevantes que mais não sejam aquelas próprias a si mesmo, parece inconsistente e improdutível, pelo menos, nos moldes em que vem sendo abordado.
Conclusões
Os resultados nos ajudaram a pensar o momento desses discentes na construção docente, imersos numa realidade prática, rodeados por questões sociais que, inevitavelmente, podem influenciar suas visões de mundo, consequentemente seu futuro docente. Esta possibilidade nos conduz até um lugar distante de uma efetiva avaliação de saber, e construção de saber, com debates e argumentações em torno da relevância, pertinência e qualidade do trajeto percorrido. A complexidade da produção universitária, e a liberdade de investigação docente, exigem autonomia. Para isso o melhor índice parece ser o bom senso, que não possui indicadores objetivos. Assim consideramos que é essencial a confiabilidade e respeitabilidade na avaliação entre os pares, principalmente, quando a avaliação acontece dentro de um quadro de posição de força e poder institucional, não reconhecendo qualquer necessidade de fundamentação adequada para sustentar o que será afirmado, sobre quem seja objeto da avaliação. Os que se ocupam da atribuição de avaliar trabalhos de outros, podem estar neste registro sem que o percebam. Principalmente nos casos em que um parecer ou avaliação de um trabalho, tem como decorrência verbas, poder, oportunidades, benefícios pessoais. Logo, a noção de memorial, que deveria derivar de um entendimento sobre o papel que a trajetória e as escolhas do indivíduo, em cada etapa de sua vida, tiveram na materialização de seus feitos, suas realizações e naquilo que ele concretizou ao fim de sua história, se esvazia em fatos nem sempre memoráveis, se banalizando em registros parciais de um infindável vir a ser, que nem sempre se concretiza, apenas expondo a intimidade da vida de alguém.
Agradecimentos
As autoras agradecem o apoio e financiamento do Grupo Interdisciplinar de Educação, Eletroquímica, Saúde, Ambiente e Arte (GIEESAA).
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