Autores

Alonso, M.O.C. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO) ; Vermelho, S.C. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO) ; Weihmuller, V.C. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO)

Resumo

Este trabalho analisa o movimento de ocupação de alunos do curso de Química – licenciatura e bacharelado – de uma universidade pública no estado do Rio de Janeiro. O objetivo foi evidenciar o caráter político dessa experiência formativa para os futuros docentes. Tomamos os conceitos de visibilidade, autoaprendizagem e de estratégias de autoexpressão da literatura para analisar os relatos e as entrevistas. Por meio da análise de conteúdo dos textos de relatos e das transcrições das entrevistas, consideramos que o movimento cumpriu um importante papel para aqueles discentes do ponto de vista de sua formação como seres políticos que, por meio do diálogo, aprenderam a construir espaços públicos democráticos. Consideramos essa experiência fundamental para uma atuação docente crítica e cidadã.

Palavras chaves

Formação de professores; Participação política; Educação comunicativa

Introdução

Neste trabalho ancoramos nossa análise na noção de público, amplamente trabalhada nas ciências sociais como uma categoria que transita por diferentes áreas de conhecimento. Com grande importância no século XX, adotamos a construção teórica desenvolvida por Sergio Caletti (2001, 2002) que entende por espaço público aquela instância aonde as subjetividades e identificações sociais se constituem a partir do jogo de visibilizar-se, representar-se e intercambiar significados e sentidos sobre o que “é comum a todos”, sobre o que nos interpela a todos como sociedade, apresentando necessariamente uma especificidade política, onde se desenvolvem os debates sobre que tipo de sociedade se deseja construir e que lugar cada agente social, segundo seus interesses e valores, pretende ocupar nela (Caletti, 2001). Caletti identifica quatro dimensões do espaço público: a) Visibilidade, b) Autorepresentação, c) Politicidade, e d) Tecnologicidade. Em relação à visibilidade, inspirado em Hannah Arendt é o lugar “Onde os habitantes do mundo se apresentam, se reconhecem e confrontam abertamente por meio da palavra ou da ação, se constituindo a si mesmos na sua relação com os outros” (Caletti, 2001, p.46). Se une com a segunda dimensão, pois é no espaço público que a sociedade se autorepresenta, criando a si mesma, a partir das interações reguladas por certos cânones de sociabilidade e visibilidade. Com politicidade o autor se refere, especificamente, à qualidade do espaço público para ser a plataforma onde acontece a luta política, o conflito (Natalucci, 2008), pois, a invenção pública dos sujeitos na trama social não é inocente. A última dimensão, a tecnologicidade, se conforma pelo conjunto de mecanismos, recursos técnicos e dispositivos socialmente disponíveis para visibilizar, circular e comunicar aqueles temas ou assuntos considerados de caráter comum. Assim, o espaço público torna-se a instância central das estruturas governamentais e de seus governados, pois é o local onde se desenvolvem as práticas de participação cidadã afim de “controlar” (apoiando, negociando ou denunciando) o Estado e de influenciar nas suas decisões e ações (Caletti, 2001). Também nos apoiamos em Henry Giroux e Peter McLaren (1987, p.224), que concebem as instituições escolares (IE) como “locais públicos onde os estudantes aprendem os conhecimentos e habilidades que são necessários para viver numa democracia crítica, locais onde eles aprendem o discurso da participação e da responsabilidade cívica”. Segundo os autores, as IE são cheias de ambiguidades onde as diferenças, as lutas e o desenvolvimento de políticas culturais podem acontecer, na medida em que se toma consciência da sua natureza como construção social, historicamente determinada, por meio do estabelecimento de relações institucionais de poder, classe, gênero, raça etc. (Giroux & Mac Laren, 1987, Giroux, 1999). Assim, focar nos aspectos do mundo social que são experienciados, mediados e produzidos pelos estudantes, a partir do seu lugar de fala, permite o desenvolvimento do sentido crítico sobre as próprias situações de vida e as formas de subordinação do conhecimento (Giroux & Mac Laren, 1987), possibilitando religar a instituição escolar com a comunidade e a “cultura da esquina” (cultura popular). Outra referência para esse trabalho é Mário Kaplún (2001) que defende uma educação comunicativa para potencializar as faculdades dos educandos para a autoaprendizagem, na qual “conhecer é comunicar”, pois o conhecimento, é sempre um produto social sujeito às possibilidades de transmissão, apropriação, recriação, transformação e superação a rede de trocas comunicativas. Nesse sentido, o contato com o mundo exterior à instituição escolar tem principal relevância pois a auto e a coeducação são concebidas como dispositivos de “ida e volta”, de reflexão-ação (práxis) sobre o que interessa - o que perpassa - as subjetividades das comunidades educativas. Assim, a educação comunicativa se apoia em estratégias de autoexpressão dos educandos, que valorizando sua palavra e ação promove a autoconsciência do seu próprio valor. Quebrar o silêncio e a passividade do modelo tradicional se coloca como lei motiv do processo formativo. Combater a imposição da cultura do silêncio (Freire, 1978), construindo os próprios sentidos e mensagens para logo comunicá-lo a outros, se coloca como a possibilidade do educando “se encontrar com ele mesmo, dando um pulo qualitativo no seu processo de formação” (Kaplún, 2001 p.34). Portanto, o processo de ensino precisa do componente informativo, mas é imprescindível o descobrimento pessoal, produto da recriação, da reinvenção. Nesse sentido, esse trabalho apresenta o resultado da análise do processo de ocupação dos licenciandos em química de uma universidade pública no ano de 2017, focalizando nas falas dos licenciandos os aspectos relacionados à experiência política da ocupação em relação à sua profissão de educador de química.

Material e métodos

Esse trabalho é resultado de investigação qualitativa que objetivou analisar o papel do movimento de #Ocupatudo no processo de formação inicial de professores em sua dimensão política. Utilizamos para analisar o processo, os relatos dos licenciandos em química que estiveram na organização do movimento numa Universidade Pública no Estado no Rio de Janeiro, e nas entrevistas que foram feitas após o movimento se encerrar. Utilizamos análise de conteúdo como técnica de análise dos dados e as categorias téoricas da visibilidade, autoaprendizagem e de estratégias de autoexpressão.

Resultado e discussão

Segundo relato dos licenciandos, não era comum observar movimentos políticos surgindo nas IE, pois pelas vivências deles até então, as vezes em que a dimensão política emergiu no cotidiano foram para as eleições do DCE ou do DAQ (Diretório Acadêmico de Química) que periodicamente os ludibriava com a ideia de estarem exercendo a cidadania. Segundo eles, apesar dos discursos sobre a importância do Diretório Acadêmico, que teoricamente buscariam levar ao aluno a consciência de que ele pode ser ativo dentro daquele espaço, a participação efetiva dos alunos intervindo no seu curso, se resumia às eleições. O primeiro indicativo de mudança foi em 2015, com a convocatória do DAQ para uma assembleia dos estudantes para que se posicionassem sobre a greve dos professores e técnicos que ocorria naquele momento na universidade. O debate entre discentes e docentes criou um precedente e apesar da adesão a greve não ter acarretado em algo concreto, a massiva maioria dos discentes teve seu primeiro contato com um processo de representatividade coletiva, isto é, a assembleia de uma categoria. A partir daí os alunos perceberam que poderiam ser escutados e, principalmente, aprenderam uma forma de fazer isso. Nesse sentido, um primeiro nível de análise nos permite considerar que esse movimento possibilitou a construção de um espaço público capaz de dar visibilidade a esses estudantes, um espaço em que as suas palavras e ações passaram a ter efeito, a serem visto. (Caletti, 2001) O movimento retornou em dimensão maior um ano depois, em função da PEC 55 e da MP da reforma do ensino médio. Retoma inicialmente com apoio da IE preocupada com uma ocupação desordenada do prédio; depois de uma assembleia dos estudantes na qual foram discutidas as consequências da PEC 55 juntamente com a MP do novo ensino médio e a necessidade de se fazer a ocupação, votaram majoritariamente pela ocupação do prédio. Segundo os organizadores, provavelmente a maioria dos alunos não sabiam o que aquilo realmente significava. Assim, se organizaram em comissões e dia após dia foram se deparando com novos desafios e de forma sempre democrática, com reuniões periódicas, as devidas decisões iam sendo tomadas. Segundo os organizadores, o apoio foi enorme nesse primeiro período, com discussões sobre vários temas, inclusive sobre educação pública, tiveram também doação de material pelos professores e alunos. Era absolutamente notável o engajamento e o interesse pelas questões políticas, possibilitando que os alunos ocupantes passassem a entender cada vez mais como aconteciam as decisões sindicais e a importância do diálogo e do debate na tomada dessas decisões. Após aprovação da PEC 55 no primeiro turno, os alunos deliberaram por manter a ocupação até a segunda votação da PEC num formato diferente, com grupos formado por alunos, professores, técnicos e terceirizados. Porém, esse novo formato da ocupação, levou vários alunos a desacreditar no movimento e deixar de participar da organização e das atividades em si. O problema era a manutenção das aulas e outros estavam se sentindo manipulados pelos professores e diretores. Apesar da tentativa e do diálogo com as três categorias do instituto, as atividades não contemplaram um número significativo de alunos, inclusive o número diminuiu em relação às atividades da primeira semana de ocupação. Nesse segundo momento da ocupação, a responsabilidade das tomadas de decisões acabou caindo sobre os representantes dos alunos que faziam parte do GT, o que os sobrecarregou de responsabilidades. A perda de adesão dos alunos, segundo avaliação dos organizadores, enfraqueceu o movimento pois perdeu a principal característica – participação – aspecto que criava uma identidade e um laço entre eles e os mantinham motivados a participarem e contribuírem da forma que fossem úteis. A PEC 55 foi aprovada em segundo turno no Senado Federal, a ocupação se esvaeceu e a rotina voltou ao normal. Ainda que o objetivo principal não tivesse sido alcançado, os participantes da ocupação, em sua maioria, conseguiram enxergar as implicações individuais e coletivas daquele movimento. Após o processo, foi realizada entrevistas com um grupo de alunos. Segundo uma licencianda do 11º período: (...) acredito que um conjunto de pessoas conscientizado e politizado pode vir a influenciar várias outras pessoas a se importar com a política brasileira. Por mais que a ocupação não tenha atingido seu objetivo principal, que era a não aprovação da PEC 55/241, atingiu de certa forma todos os estudantes e trabalhadores (...), mostrando que hoje os estudantes da Química se mostram unidos, politizados e ativos na universidade, prezando pela melhoria da (...) e da educação brasileira como um todo. Quando questionada sobre o que mudou nos ocupantes após o movimento, a mesma aluna disse: (...) O conhecimento de palavras-chaves na política, o modo de se expressar, aprendizado me fez uma pessoa mais experiente e mais conscientizada a pensar no coletivo. Por mais que minhas raízes tenham me ensinado a pensar desse jeito desde a minha infância, creio que movimentos como esse visto de perto nos faz crescer como ser humano e a repensar nos seus atos diários. Com certeza me sinto e sei que sou uma pessoa melhor depois de ter participado desse movimento. Os entrevistados também consideraram que a ocupação produziu algo significativo ao final, como diz uma das alunas do 4º período: Sim (a ocupação produziu algo significativo), aumentou o respeito dos docentes e técnicos para com os discentes visto que a conduta dos discentes foi exemplar durante o movimento. E também promoveu o debate, o que é sempre positivo. Essas falas evidenciam que o movimento político da ocupação possibilitou a autoaprendizagem, um processo coletivo de reconhecer-se como seres políticos, processo construído pelo coletivo, como “um produto social” que emergiu de um contexto social para além da IE da qual era integrantes, pois a pauta dos secundaristas não deixou de ser bandeira de luta dos licenciandos. Apesar dessa avaliação positiva, houve críticas ao movimento por parte de alguns alunos, como diz uma aluna do 7º período. (...)o modo como foi feita (a ocupação) não alterou em nada apenas atrasou. Outras formas de manifestações seriam melhores como ocupação da própria reitoria que teria mais visibilidade do que ocupar um prédio que está caindo aos pedaços [onde] ninguém vê. Parte dos alunos não ocupantes não aceitava a ocupação com interrupção das aulas da graduação. Consideraram que a ocupação estava prejudicando uma parte dos discentes e, assim, não poderia ter o apoio deles. De qualquer maneira, consideramos que a experiência da Ocupação pode ser pensada a partir do conceito de Educação Comunicativa de Mário Kaplún, apoiada nas análises da forma como o movimento se organizou e lidou com a adversidade, construindo estratégias de autoexpressão, que valorizou o que pensavam, abriu espaços para ações coletivas, com divergências internas, com contradições. Essas experiências, pela sua carga subjetiva e política, tem um grande potencial para promover a autoconsciência do valor de cada um desses jovens e futuros professore(a)s. Como afirmamos acima, quebrar o silêncio e a passividade do modelo tradicional de experiência educacional se coloca como lei motiv do processo formativo capaz de transformar a vida das pessoas. Com relação aos benefícios, de início, o fato de ter sido um movimento político crítico e movido pelo pensamento coletivo já é uma forma direta de influência na formação dos professores. Tendo em vista o objetivo central da educação popular, que é fomentar o senso crítico, o desenvolvimento de uma consciência cidadã, consideramos fundamental o(a) professor(a) aguçar o seu próprio senso crítico, sua capacidade de julgamento e escolhas e, principalmente, sua postura política de intervenção. Como ensinar cidadania sem nunca vivê-la? A ocupação, como exposto nas entrevistas, foi uma clara forma de exercer a cidadania para além do voto

Conclusões

Uma das conclusões desse estudo, apontada por um dos organizadores do movimento, foi a ressignificação do conceito de diálogo. Diálogo é pressuposto para qualquer sociedade verdadeiramente democrática, e uma educação que vise essa sociedade, deve promovê-lo no seu cotidiano. Isso efetivamente ocorreu durante a ocupação. Em momento algum aconteceu uma aula expositiva como o tema “O que é Diálogo?”, tampouco o tema “diálogo” esteve em pauta em alguma atividade, ele apenas ocorreu, ele foi aprendido na prática. Não foram lidos textos sobre a importância do diálogo em um processo de conflito ou de embates, foi vivida essa importância. Não havia ninguém para ensinar como dialogar, eles dialogaram. Puderam ver quais as consequências do diálogo respeitoso e principalmente puderam sentir a tensão criada pela sua ausência ou pela sua distorção. O conceito foi construído vivendo-o e precisando dele. Um aprendizado que não precisou ser avaliado para ser aprovado e que durará mais do que até o dia da prova. Talvez esse tenha sido o maior legado que fico dessa experiência para aqueles futuros professore(a)s, não tanto pelo o que foi aprendido, mas pela forma como foi aprendido. Por fim, ter um movimento político apoiado por uma parcela expressiva dos alunos e professores, com uma pauta de cunho político-social-pedagógico, realizado e iniciado pelos próprios alunos pertencentes a um curso historicamente indiferente a essas questões, sem dúvidas foi um pontapé que abriu os olhos não só dos próprios alunos, mas de muitos professores que ali não acreditavam que pudesse surgir reivindicação. Trouxe um ar de cidadania àquele ambiente e um aviso de que hoje parte considerável dos alunos saberão a quem recorrer, como recorrer e, principalmente, irão recorrer caso os mesmos julguem necessário recorrer. Talvez esses futuros professore(a)s possam trazer novas luzes para a educação pública na consolidação de nossa tão combalida democracia brasileira.

Agradecimentos

Referências

CALETTI, S.Siete tesis sobre comunicación y política. Diálogos de la comunicación, N° 63. Felafacs . Lima. pp. 37-49, 2001.

CALETTI, S. Comunicación, política y espacio público. Notas para repensar la democracia en la sociedad contemporánea. Borradores de trabajo 1998- 2002. Mimeo. Buenos Aires, 2002.

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