Autores

Lima da Silva, L. (UFRJ) ; Paz Furlanetto, R.P. (UFRJ) ; Barbosa do Nascimento, E.S. (UFRJ) ; Moreira de Sequeira, S.C. (UFRJ) ; Nogueira Gomes da Silva, F.A. (UFRJ) ; Gomes Teixeira, V. (UFRJ)

Resumo

Devido ao baixo número de mulheres que atuam e são reconhecidas nas áreas das Ciências Exatas e da Natureza, o projeto Meninas na Química, desenvolvido pelo Laboratório Didático de Química da UFRJ, tem como objetivo despertar o interesse de meninas do Ensino Médio a ingressar em carreiras que envolvem Química, Física e Matemática. Além de problematizações acerca o papel da mulher na sociedade, são desenvolvidas oficinas sobre cosméticos. O presente estudo apresenta uma análise detalhada de uma das oficinas, a de produtos naturais. A proposta permitiu a discussão sobre gênero nas Ciências Exatas, dando a oportunidade de as meninas exercerem um papel ativo durante as atividades, colaborando para um aprendizado mais efetivo e consistente dos conceitos científicos abordados.

Palavras chaves

Relações de gênero; Cosméticos; Produtos naturais

Introdução

Historicamente, a ciência é vista como uma atividade masculina, no entanto, mesmo no passado, as mulheres participaram da produção do conhecimento científico. Em tempos onde a ciência era produzida no âmbito familiar, a mulher teve sua participação analisando plantas, insetos ou outros animais, sozinha ou auxiliando seus pais, maridos e irmãos cientistas (SCHIEBINGER, 2001). Além disso, as mulheres foram responsáveis por grandes estudos sobre o uso de plantas e ervas medicinais (SCHIEBINGER, 2001; TOSI, 1998). Depois da formalização das ciências, tais conhecimentos passaram a ser adquiridos apenas dentro da Universidade, local esse que até recentemente era restrito aos homens, pois às mulheres cabia apenas atividades ligadas ao cotidiano doméstico, como a gestão do lar e o cuidado infantil, além de cuidados estéticos pessoais, consolidando a ciência com uma base majoritariamente masculina. Contudo, no final da década de 30, o número de meninos e meninas em todos os níveis escolares começou a se equiparar, sobretudo nos cursos superiores, tornando-se esta uma tendência crescente e constante daí em diante (AZEVEDO, 2006). Entretanto, ao fazer uma análise detalhada de tal avanço, é possível perceber que as mulheres passaram de uma total exclusão para uma inclusão progressiva e segregativa em certas áreas do conhecimento e profissões que, no entanto, se mantiveram predominantemente masculinizadas. Observa-se que ao longo da última década as mulheres estão entre os mais escolarizados e são maioria no ensino superior brasileiro (IBGE/Censo 2010). Todavia, mesmo que estes dados pareçam memoráveis, este cenário não exclui as desigualdades de gênero, pois, ainda nos dias de hoje, as mulheres seguem concentradas em cursos tidos como tipicamente femininos, como os das áreas das Ciências Humanas, enquanto que nas áreas das Ciências Exatas a atuação feminina é menor e menos reconhecida quando comparada à masculina. Segundo Fourez (1995), é possível ter dois tipos de atitude frente a isso: A atitude idealista, onde as normas universais, que determinam de que modo é e como deve ser o real, são simplesmente aceitas, e a atitude histórica, que reconhece as configurações atuais da Ciência como resultado de uma evolução constante. A partir da atitude histórica é possível entender que a noção de ciência masculinizada se deu, e ainda se dá, por conta de uma história, humanamente construída, portanto, falível. Hoje, como agentes dessa construção, temos a possibilidade de mudar essa realidade. Em nossa sociedade, a escola é vista como uma instituição responsável pela transmissão sistematizada dos conhecimentos desenvolvidos pela humanidade ao longo da História, sendo, portanto, o ambiente mais propício para tratar-se sobre essas questões (COOPER & EDDY et al, 2010). Os Parâmetros Curriculares Nacionais e as Orientações Curriculares para o Ensino Médio destacam a necessidade de entender-se a ciência como atividade humana, histórica, associada a aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais e a valorização do trabalho em grupo em favor da construção coletiva do conhecimento. Já a recém-homologada Base Nacional Curricular Comum, surge como proposta para a equidade do ensino básico. Esta, teoricamente, será responsável por acrescentar no currículo escolar o estímulo ao desenvolvimento do pensamento científico, crítico e criativo. Segundo Santos (2008) e Fourez (2003), não há como seguir o sugerido pela legislação sem que as questões de gênero sejam inseridas. Para tratar de tal tema nas escolas, propõe-se o ensino investigativo que, para Oliveira (2010), são atividades elaboradas de caráter mais aberto, onde não se faz necessária a utilização de roteiros que restrinjam a influência ou modificação por parte dos alunos. Dessa maneira, a aula é construída a partir das discussões e envolvimento dos alunos: "Nessa abordagem, os alunos têm a oportunidade de discutir, questionar suas hipóteses e ideias iniciais, confirmá-las ou refutá-las, coletar e analisar dados para encontrar possíveis soluções para o problema" (SUART & MARCONDES, 2008). Seguindo essa linha, o projeto Meninas na Química surge com a proposta de despertar o interesse de alunas do ensino médio pela Química, Física e Matemática. O projeto, de temática feminista, constrói uma discussão acerca do papel da mulher na sociedade ao longo dos anos e sua relação com a beleza, o que desemboca no tema cosméticos. Este tema é inserido na discussão como propulsor de conteúdos de Química, Física e Matemática, que são suscitados por situações problema a serem resolvidas com o uso da experimentação. Neste contexto, o presente estudo tem como objetivo apresentar uma das oficinas de experimentação proposta pelo projeto Meninas na Química – a de produtos naturais, a partir da extração da camomila, feita de forma investigativa e interdisciplinar, estimulando o processo de construção de conhecimento das alunas.

Material e métodos

O projeto foi realizado com visitas regulares de 2 h semanais ao Ciep 312 Raul Ryff, localizado na Zona Oeste do Rio de Janeiro com 25 alunas, do 1º e 2º anos do Ensino Médio. As atividades descritas neste trabalho diz respeito à visita, de aproximadamente 8 h de duração, que as alunas participantes realizam ao Laboratório Didático de Química da UFRJ (LaDQuim) no final do projeto. Inicialmente, tratou-se sobre o papel da mulher em diferentes sociedades ao longo do tempo e sua atuação no mercado de trabalho. Por meio da abordagem da construção de identidades e da busca por um bem-estar pessoal que sobrepõe ao conceito padronizado e imposto socialmente de beleza, iniciou-se a abordagem do tema cosmético. A partir disso, as meninas foram direcionadas a conceituar produtos cosméticos e descrever a sua utilização. Por fim, foram indagadas sobre a formulação de diversos tipos de produtos. Em seguida, foi inserido na discussão o uso de produtos naturais na cosmética bem como as suas propriedades biológicas e toxicidade. Todo esse debate culminou nas seguintes questões-problema que foram direcionadas às participantes: Segundo a crendice popular, todos os chás preparados a partir de ervas não têm efeitos nocivos. Será verdade? Nesse contexto, o experimento buscou não se afastar realidade na qual o público estava inserido, se aproximando das questões cotidianas. As alunas então foram indagadas quanto ao preparo de chás de ervas naturais. Podemos fazer chá de qualquer planta? Qual é a ação da água nessa planta? E se mudássemos a água por outro solvente? A fim de solucionar essas questões, deu-se início à experimentação. As alunas foram separadas em 5 grupos de 5 componentes e cada grupo foi acompanhado por um mediador durante todo o procedimento em bancada. Inicialmente, preparou-se extrato de camomila utilizando-se álcool etílico como solvente e extrato de camomila utilizando-se água como solvente (chá). No decorrer do experimento, foram discutidos os resultados esperados. Para isso, os conceitos de polaridade, ligações químicas e eletronegatividade foram apresentados. Abordou-se também sobre a técnica de separação a ser utilizada na análise dos extratos, a cromatografia em camada fina (CCF). Feito o experimento, as alunas foram conduzidas ao Laboratório de Informática, onde foi feita uma apresentação sobre a estrutura de um relatório científico. Havia um computador para cada grupo com uma página contendo os campos intitulados “Identificação do grupo”, “Título”, “Introdução”, “Metodologia”, “Resultados e discussão” e “Conclusão”. Todos esses tópicos foram explicados e em seguida, os grupos foram solicitados a desenvolver um relatório baseado na observação experimental e na discussão teórica que foi realizada. Vale ressaltar que durante a elaboração dos relatórios, as alunas tiveram total liberdade para discutir em seus grupos, sem a influência de mediadores.

Resultado e discussão

Na parte inicial, onde foram tratados acontecimentos históricos e sociais em relação à mulher, observou-se grande participação e envolvimento das alunas. Durante toda abordagem, as meninas destacaram pontos em que tal situação se aplicava em seu cotidiano, tanto no ramo familiar quanto escolar e social. Num segundo momento, os padrões de beleza impostos pela sociedade foram inseridos na discussão. Nesse contexto, realizaram-se atividades lúdicas onde as alunas criaram imagens de mulheres seguindo o que elas consideravam o padrão de beleza atual. A relação estreita entre mulher e beleza foi evidenciada e discutida ao longo da atividade, o que contribuiu para iniciar-se uma abordagem envolvendo a construção de identidade e a busca por um bem-estar pessoal. Nesse cenário, introduziu-se o uso dos cosméticos como uma forma de cuidado pessoal. O fato de os cosméticos estarem presentes no dia-a-dia das alunas contribuiu para maior facilidade de introduzir-se o tema. Observou-se que, devido a isto, as meninas continuaram bastante participativas, contribuindo ativamente para a discussão com conhecimentos prévios adquiridos por experiências cotidianas. A partir dos argumentos das alunas participantes, conceituou-se a definição, funções e classificações de cosméticos. Depois disso, as meninas foram instigadas a comentar sobre produtos naturais. Crenças populares do tipo “O que é natural não faz mal”, “...Vem da natureza, se não fizer bem, mal não vai fazer...” e “A natureza faz bem para tudo” foram pronunciadas pelas alunas. Depois do preparo dos extratos e do esclarecimento teórico dos conteúdos, os grupos concluíram que os diferentes solventes extrairiam diferentes substâncias devido às diferentes interações intermoleculares entre soluto e solvente. Para que isso fosse avaliado, a separação dos extratos de camomila por cromatografia em camada fina foi realizada pelos grupos. Após a realização do experimento, as alunas foram guiadas para redigir um relatório a respeito da atividade. Na introdução dos relatórios, observou-se que apesar de as alunas terem sido bastante participativas na argumentação oral sobre cosméticos e produtos naturais, na argumentação escrita os grupos foram bem pontuais e objetivos. “Por que a camomila tem várias funções diferentes? O extrato aquoso e alcóolico apresentam a mesma composição? Tudo que é natural faz bem? São exatamente os objetivos do experimento. Iremos descobrir se a camomila tem mais de uma substância ou não.”. Todos os grupos seguiram basicamente a mesma tendência, descrevendo de maneira sucinta os objetivos experimentais sem destrincha-los. Alguns grupos tiveram dificuldade em diferenciar metodologia de resultados e discussão. Dessa forma, preferiram condensá-los em apenas um tópico descrito como desenvolvimento. Como pode ser observado abaixo: “Inicialmente, colocamos a camomila no almofariz e maceramos até ficar bem triturado. Depois, colocamos no bécher a camomila com 10 mL de etanol quente, agitamos com bastão de vidro e esperamos 30 minutos. Logo após passar 30 minutos, filtramos a camomila e marcamos a margem na placa de CCF. Depois pingamos com o capilar o extrato de camomila. Em seguida, colocamos o bécher de 400 mL com eluente e posicionamos a placa inclinada dentro desse bécher. Percebemos que o eluente subiu pela placa levando as substâncias da camomila até a margem que marcamos, levamos a placa até a câmara de luz ultravioleta e avistamos os rastros das substâncias.”. Nesse trecho, analisa-se que as alunas conseguiram descrever de forma clara os passos que se sucederam, fazendo o uso correto dos nomes das vidrarias utilizadas, que até então, eram totalmente desconhecidos por elas. Devido a essa compactação entre dois tópicos importantes na construção do relatório, a conclusão dos grupos consistiu em uma breve discussão acerca da teoria envolvida no experimento. Foram evidenciados alguns equívocos conceituais como pode ser observado no fragmento: "A placa de CCF absorveu a sílica que estava no fundo do béquer de 400 mL, fazendo com que partes do extrato de camomila fossem levadas ao topo da placa." Nota-se que o argumento pareceu confuso, por ser mais descritivo do que conclusivo, indicando certa carência no correto entendimento sobre os conceitos e entre as diversas seções que compuseram relatório experimental. Ainda na conclusão deste grupo, as alunas completaram que: "As substâncias que não foram levadas ao topo da placa tinham alta taxa de polaridade e as que não chegaram tinham baixa taxa de polaridade. Então descobrimos que na camomila existe mais de uma substância.". É relevante considerar que a ideia sobre a natureza polar e apolar de determinadas substâncias parece ter sido compreendida pelas alunas. Os equívocos aqui observados aparecem mais acentuados na forma de expressar as ideias compreendidas. A palavra “taxa” não foi empregada corretamente quando tratou-se da diferença de polaridade entre as diversas substâncias. Apesar dessa falha na descrição da ideia, o entendimento sobre a separação dos constituintes da mistura presentes na composição da camomila parece ter sido alcançado. Observou-se que as alunas, no geral, tentaram responder a introdução por meio da conclusão: "As substâncias com menor interação com a placa de sílica demoraram mais para subir (...). Observou-se que a camomila possui diversas substâncias e vimos que ela é considerada uma planta medicinal, mas é muito possível que haja substâncias que façam mal a saúde. Por isso, é muito importante tomar cuidado com a quantidade e o modo de preparo, não só com a camomila, mas com todas as plantas consideradas medicinais." Nesse trecho, há um equívoco acerca do entendimento do processo de separação cromatográfica: pelo fato de haver menor interação entre a substância e a placa de sílica, é de se esperar que o deslocamento pela placa seja facilitado. Além disso, a utilização de termos como “demorado” refletem uma linguagem mais informal empregada na descrição dos resultados, o que merece mais atenção quando empregados em uma abordagem científica. Por fim, a possibilidade levantada de haver substâncias na camomila que podem fazer mal à saúde, parece ter sido empregada sem a fundamentação abordada no início da discussão, mesmo por que o processo cromatográfico utilizado não identifica quais substâncias estão presentes na camomila, sendo assim, o mais viável seria citar apenas os fatores de modo de preparo e quantidades utilizadas para a não interferência da camomila na saúde humana de forma negativa. Apesar de algumas fragilidades conceituais na argumentação das alunas ao longo de seus relatórios, elas também apresentaram interpretações consistentes. Além disso, os erros foram facilmente detectados posteriormente pelos mediadores devido à clareza na argumentação dos grupos. Com isso, as dúvidas conceituais foram solucionadas no fim da atividade.

Figura 1

Figura 1. Desenhos elaborados pelas alunas.

Figura 2

Figura 2. Discussão, realização e observação do experimento.

Conclusões

A proposta utilizada atende os Parâmetros Curriculares Nacionais e as Orientações Curriculares para o Ensino Médio, tornando as alunas ativas no processo de aprendizagem e estimuladas a entender sobre questões sociais que envolvem a luta por direitos e reconhecimento femininos. A questão-problema apresentada às alunas incitou a reflexão acerca do problema exposto, de modo que as alunas potencializassem a dimensão coletiva do trabalho científico, elaborando hipóteses, realizando atividade experimental, criando ambiente de diálogo e debate referentes às atividades desenvolvidas. A partir de todas as abordagens levadas pelo projeto, alguns resultados parciais importantes são observados, como o aumento na capacidade de argumentação oral das alunas participantes. A inclusão de novas ideias e palavras no vocabulário das alunas é visível no decorrer das atividades, seja pelo aumento do vocabulário químico referente às vidrarias utilizadas, conceitos básicos, técnicas utilizadas etc., seja pela necessidade de poder expressar as ideias de uma forma clara. A dificuldade que elas apresentaram na expressão escrita pode ser devido à falta de oportunidade para vivenciar de maneira mais acentuada os ambientes de laboratoriais e elaboração de relatórios experimentais. Por fim, pelo diálogo com as alunas participantes das ações do projeto, foi observado o interesse delas pela aplicação prática dos conceitos discutidos em suas aulas regulares. Além disso, foi notório o interesse das alunas pelas discussões que envolvem questões de gênero e as problemáticas levantadas dentro das temáticas do movimento feminista e inclusão da mulher nas áreas de ciências.

Agradecimentos

PIBEX/PR5 UFRJ.

Referências

AZEVEDO, N.; FERREIRA, L. O. Modernização, políticas públicas e sistema de gênero no Brasil: educação e profissionalização feminina entre as décadas de 1920 e 1940. Cad. Pagu, Campinas, n. 27, p. 213-254, jul.-dez., 2006.
COOPER, J.; EDDY, P.; HART, J.; LESTER, J.; LUKAS, S.; EUDEY, B.; GLAZERRAYMO, J.; MADDEN, M. Improving gender equity in postsecondary education. In: KLEIN, S. S. (Gen. Ed.). Handbook for Achieving Gender Equity through Education, New York and London: Routledge, 2. ed., p.631-653, 2010.
FERREIRA, L. H.; HARTWIG, D. R.; OLIVEIRA, R. C. de. Ensino experimental de química: uma abordagem investigativa contextualizada. Química nova na Escola, v. 32, n. 2, p. 101-106, 2010.
FOUREZ, G. A construção das Ciências. Introdução à filosofia e a ética das Ciências. São Paulo: Editora UNESP, 1995.
SCHIEBINGER, L. O feminismo mudou a ciência? São Paulo: EDUSC, 2001.
SUART, R.C.; MARCONDES, M.E.R. As habilidades cognitivas manifestadas por alunos de ensino médio de química em uma atividade experimental investigativa. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, v. 2, 2008.
TOSI, L. Mulher e Ciência: a revolução científica, a caça às bruxas e a ciência Moderna. Cadernos Pagu, Campinas, n. 10, p. 369-397, 1998.