Autores

Prata, J. (UFRJ) ; da Silva, J. (UFRJ)

Resumo

Este trabalho avalia uma sequência didática (SD) para a aprendizagem contextualizada sobre ligações químicas a partir de discussões sobre a fome e a alimentação, empregando como recurso didático um jogo que aborda os tipos de ligações presentes em certos alimentos. A SD foi proposta para alunos de uma turma da NEJA de uma escola pública, e ao seu término os estudantes redigiram um texto sobre fome e desigualdade social e responderam a um questionário sobre a relevância de revisar o conteúdo de Química através de um jogo. As contribuições do enfoque CTS foram analisadas a partir dos textos redigidos pelos educandos sobre a fome no Brasil, principalmente em relação às desigualdades sociais, políticas e econômicas, e o jogo foi avaliado através das respostas fornecidas no questionário.

Palavras chaves

Sequência didática; Ligações Químicas; Enfoque CTS

Introdução

Sabe-se que o alimento é condição essencial para a sustentação da vida. A alimentação, juntamente com o problema da fome e da subnutrição, não deve ser analisada somente pelo viés econômico, social e biológico. Trata-se, segundo Valente (2003), de uma atividade que reflete a grandiosidade do processo histórico das relações sociais com toda a diversidade ligada à identidade cultural de cada grupo social. Dessa forma, o autor indica que a alimentação humana encontra-se na interface dinâmica entre o alimento (natureza) e o corpo (natureza humana), transformando os seres humanos em cidadãos saudáveis a partir de uma mudança de atitude, se apropriando de uma consciência sobre a importância de uma alimentação adequada às exigências biológicas e da vida contemporânea. Por sua vez, a promoção da alfabetização científica e tecnológica em sala de aula é relevante no atual cenário político da sociedade brasileira, por permitir que o educando desenvolva sua autonomia frente a questões cotidianas, utilizando um olhar político e social crítico e que envolve saberes científicos e tecnológicos (SANTANA, 2015). Existe um amplo interesse da sociedade em múltiplas questões sociocientíficas, e entre eles encontram-se os problemas relacionados à prática alimentar e às carências nutricionais baseadas em hábitos alimentares indevidos. A relevância dos alimentos no contexto da promoção da saúde e da nutrição humanas torna-se, assim, um tema que dialoga com a Abordagem Temática Freireana, uma perspectiva pedagógica que preconiza o uso de situações significativas do cotidiano dos alunos como “algo a que chegamos através não só da própria experiência existencial, mas também de uma reflexão crítica sobre as relações homens-mundo e homens-homens” (FREIRE,1987, p.13). Além dos conceitos científicos relacionados ao tema, é necessário que haja, ainda, discussões de uma situação-limite vivenciada pelos alunos, pois Delizoicov (2009) aponta que a aprendizagem é o resultado das ações de um sujeito, sendo construída em uma interação entre ele e o meio social, reconhecendo o aluno como foco da aprendizagem. Chassot (2007), por sua vez, esclarece que o professor em sala de aula deve ter um papel formador, por ser fundamental em auxiliar os alunos na formulação e reformulação de conceitos, partindo do conhecimento prévio dos alunos e promovendo a articulação entre esses conhecimentos e as novas informações, utilizando recursos didáticos capazes de mediar a construção de novos conhecimentos e habilidades. Dessa maneira, se faz relevante o reconhecimento, entre os educadores em Química, da necessidade de se buscar uma articulação entre as dimensões científica e social no ensino dessa disciplina, promovendo reflexões críticas e sociocientíficas sobre as relações CTS (SANTOS, 2002). Levando em consideração o valor que as atividades didáticas adquirirem quando colocadas numa sequência significativa, a sequência ou unidade didática é um tema de interesse da área de Ensino, tendo sido definida por Zabala (1998) como um “conjunto de atividades ordenadas, estruturadas e articuladas para a realização de certos objetivos educacionais, que têm um princípio e um fim conhecidos tanto pelos professores como pelos alunos” (Zabala, 1998, p. 18). As unidades têm como propósito manter o caráter unitário do ensino e reunir toda a complexidade da prática pedagógica, incluindo diferentes fases de intervenção reflexiva como o planejamento, a aplicação da atividade e sua avaliação, servindo para a compreensão de seu valor educacional. Em vista do exposto, o presente trabalho propõe uma Sequência Didática (SD) focada na aprendizagem dos conteúdos referentes às ligações químicas e associada ao tema sociocientífico “alimentação”, utilizando como referencial o enfoque Ciência-Tecnologia-Sociedade (CTS). Na SD foi abordado o tema alimentação pois, segundo Hernandez (2005), é através da alimentação que se estuda a gastronomia mundial e onde é possível conhecer a arte de cozinhar e a satisfação de se alimentar.

Material e métodos

Este trabalho foi baseado em uma SD realizada com 30 alunos de uma turma do Módulo II da Nova Educação de Jovens e Adultos em uma escola estadual da cidade do Rio de Janeiro. Esta SD foi planejada para estes sujeitos, abordando o conteúdo de Ligações Químicas e buscando a reflexão sobre a educação alimentar e possíveis motivos que levam a ocorrer a fome, ou seja, um estado de subnutrição, em diversas localidades no Brasil. A SD foi elaborada em cinco etapas, com as atividades pedagógicas dimensionadas para doze aulas de cinquenta minutos cada, sendo composta pela seguinte estrutura: 1-Conceito de ligações químicas, suas propriedades, aplicações e revisão dos tópicos abordados; 2-Aula expositiva dialogada, com exibição de um vídeo, discussões sobre a questão da fome no Brasil e redação de um texto dissertativo-argumentativo; 3-Discussão sobre a gastronomia molecular (GM) através de uma aula expositiva dialogada, com exibição de um vídeo e considerando suas implicações sociais; 4-Revisão do conhecimento construído com aplicação de um jogo e avaliação da percepção dos alunos sobre o mesmo através de um questionário; 5-Avaliação da proposta através da prova bimestral. O jogo, denominado “A trilha das ligações químicas”, teve como propósito a revisão dos conteúdos de ligações químicas relacionadas aos alimentos, constituindo-se em um método avaliativo dinâmico e divertido, proporcionando a interação entre os alunos. O jogo foi elaborado e confeccionado utilizando materiais de baixo custo, onde a base do tabuleiro foi construída com EVA, as casas com papel cartão colorido e o dado com papelão e EVA, além dos pinos de plásticos que foram utilizados como peões. As perguntas referentes ao jogo, relacionadas às Ligações Químicas, foram projetadas utilizando-se um data show e deveriam ser respondidas corretamente para se chegar ao final do percurso. De maneira geral, as perguntas envolviam os diferentes tipos de interações interatômicas e intermoleculares discutidas em aulas anteriores, com a finalidade de promover a aprendizagem e atrair o interesse pelo conteúdo abordado. Esse jogo apresenta as seguintes regras: divide-se a turma em cinco grupos de quatro a cinco alunos; define-se a sequência dos grupos no jogo pela ordem decrescente de números obtidos no lançamento dado; para cada equipe é feita uma pergunta com quatro opções de respostas, sendo que a resposta certa permite que a equipe avance nas casas; ganha o jogo a equipe que chegar ao final do tabuleiro. Após o jogo, realizou-se uma pesquisa qualitativa utilizando um questionário baseado na Escala de Likert para a análise das respostas apresentadas pelos alunos sobre o jogo, com a finalidade de se verificar como os educandos avaliaram o jogo como recurso didático facilitador e enriquecedor do processo de ensino-aprendizagem.

Resultado e discussão

Várias mudanças, nos últimos anos, têm sido sugeridas na forma de ensinar e aprender conceitos químicos para que os alunos possam compreendê-los ou se interessarem por estes. Assim, utilizar uma perspectiva baseada em um tema gerador possibilitou, nesta SD, a adoção de um diálogo coletivo sobre a realidade dos alunos, emergindo daí uma rede de relações entre situações individuais e sociais, possibilitando que o indivíduo se separe do objeto para dele se reaproximar com um olhar mais crítico. A avaliação dos textos argumentativo-dissertativos sobre a “Fome e desigualdade social no século XXI” foi realizada pela categorização dos tópicos abordados nas respostas dos alunos, sendo as categorias de maior frequência: desigualdade social (80%); políticas econômicas mal planejadas (60%); pobreza (55%); questões naturais como clima, terremotos, seca e pestes (50%) e conflitos políticos e civis (50%). Os textos mostraram, ainda, que os educandos compreenderam que existe uma produção de alimentos suficiente para suprir as necessidades calóricas dos indivíduos de uma população, porém há uma deficiência no sistema de distribuição dos recursos necessários para se ter acesso à alimentação, relacionada a uma estrutura social desigual. Como aponta Belik (2003), no Brasil a maior causa da falta de acesso aos alimentos, bem como da desnutrição, denominada popularmente como fome, está atrelada ao baixo nível de renda, justificando as atribuições feitas pelos alunos. Ademais, esta reflexão sobre a fome contribui para o uso do enfoque CTS, de acordo com Souza (2012), pois corrobora que o ensino de Química pode contribuir positivamente na formação dos alunos, pois viabiliza a compreensão sobre as variações da dinâmica social e consequentemente, esse ensino deve ser norteado pela construção e reconstrução de seus conteúdos científicos e tecnológicos a fim de promover o pensamento crítico sobre o mundo. Isso implica em um conhecimento químico que dialogue com os processos sociais, políticos e econômicos que estão em constante transformação, não sendo apenas um conteúdo determinado a partir da ordenação dos livros didáticos e dos programas curriculares. Assim, a proposta contida nessa SD apresentou o desenvolvimento de atividades que interligam os conceitos sobre ligações químicas ao tema social fome e subnutrição. Por sua vez, o jogo “A trilha das ligações químicas” (Figura 1) foi aplicado a trinta alunos, sendo avaliado por meio de um questionário respondido ao seu final e cuja finalidade foi verificar a sua aceitação como recurso didático e se os alunos consideraram que ele contribuiu para a compreensão do tema ligações químicas e sua relação com os alimentos. O Gráfico 1 apresenta, no eixo das abscissas, as seis assertivas e no das ordenadas, a quantidade de respostas dos alunos às assertivas do tipo Likert (escala de cinco pontos). As assertivas do questionário são: Assertiva 1: Aprendi coisas importantes sobre química durante a atividade; Assertiva 2: A atividade me ajudou a relacionar o conteúdo de ligações químicas com o cotidiano; Assertiva 3: A atividade me ajudou a fixar o conteúdo de interações interatômicas; Assertiva 4: Realizar essa atividade fez com que eu entendesse a importância das interações intermoleculares; Assertiva 5: A atividade me ajudou a fixar o conteúdo de geometria molecular; Assertiva 6: Realizar essa atividade aumentou minha vontade de estudar química. Numa escala de cinco pontos, 95% dos alunos avaliaram que aprenderam conteúdos relevantes sobre a química durante essa atividade, atribuindo um caráter lúdico ao processo, despertando, dessa forma, o gosto e o interesse do aluno pelo conhecimento abordado. Com isso, o educando reconhece a relevância do estudo sobre ligações químicas como um assunto fundamental para o entendimento das transformações que ocorrem ao seu redor, justificando a Abordagem Temática Freireana ao contemplar o diálogo e a problematização no contexto da prática educativa envolvendo ligações químicas. De acordo com Kishimoto (1996), a utilização do jogo potencializa a exploração e a construção do conhecimento por apresentar uma motivação interna típica do lúdico, já que o jogo é ligado ao prazer e ao divertimento, e o aspecto educativo do mesmo possibilita o acesso ao conhecimento. Pôde-se perceber que todos os alunos compreenderam a relação feita entre as ligações químicas e os alimentos. Nessa perspectiva, o conhecimento foi construído através do diálogo entre os alunos e entre eles e o professor mediador. A atividade lúdica também possibilitou ao professor realizar uma avaliação diagnóstica sobre os conteúdos químicos abordados, principalmente de conceitos que se acreditava já estarem acomodados. Identificou-se, ainda, um alto índice de satisfação em realizar a atividade e um aumento na vontade em estudar química, embora 14% não tenham se sentido motivados, mesmo utilizando uma estratégia de ensino que proporcionasse as relações entre os conteúdos químicos abordados e os alimentos que se fazem presentes em suas vidas. A aplicação do jogo visou contribuir com o processo de ensino e aprendizagem e estimular o desenvolvimento de diversas habilidades dos alunos. Dentre estas habilidades, pode-se citar: revisar conceitos importantes do conteúdo; contextualizar conhecimentos; avaliar conteúdos já desenvolvidos e senso de cooperação e de trabalho em grupo. Por meio da análise do questionário, percebe-se que o jogo pode ser incorporado às aulas por contribuir de forma satisfatória com a aprendizagem sobre ligações químicas.

Figura 1

Jogo “A trilha das ligações químicas”

Gráfico 1

Gráfico 1: Número de respostas às assertivas do questionário de avaliação.

Conclusões

Com o intuito de apresentar e exercitar conceitos químicos relativos à ligação química, a SD descrita neste trabalho foi aplicada como instrumento facilitador do processo de ensino e aprendizagem, com a promoção da motivação e do desempenho nas avaliações. A dificuldade encontrada pelos educandos na aprendizagem do tema Ligações Químicas originou essa proposta de SD que se constituiu em uma atividade capaz de incentivar a participação ativa dos alunos na aula de Química, colaborando para a motivação e o estímulo dos mesmos nas atividades. Observou-se, através dos resultados da avaliação dos conteúdos abordados nos textos argumentativos, que os educandos compreenderam as análises críticas ocorridas durante o debate sobre os conceitos de fome e subnutrição, das suas implicações para o processo de elaboração de política públicas no Brasil, além dos papéis e obrigações do Estado que podem ser monitorados por diferentes atores sociais. Ademais, os resultados obtidos pelo questionário sugerem que o jogo desenvolvido se mostrou uma ferramenta eficiente para a revisão dos conteúdos abordados e que complementou as demais atividades pedagógicas conduzidas pelo professor mediador.

Agradecimentos

Aos alunos do Colégio Estadual Baronesa de Saavedra que participaram e que contribuíram para o desenvolvimento deste trabalho e ao PEQui/UFRJ.

Referências

CHASSOT, A. Educação consciência. Santa Cruz do Sul: Editora EDUNISC, 2007.

DELIZOICOV, D.; ANGOTTI, J. A.; PERNAMBUCO, M. M. Ensino de Ciências: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2009.

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ZABALA, A. Prática Educativa: como ensinar. Porto Alegre: ARTMED, 1998.