Autores
dos Santos Reis, E. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARA) ; Beserra Almeida, M.M. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARA) ; Ogaranya Otobo, A. (UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PARÁ)
Resumo
O presente estudo apresenta aspectos relevantes no que se refere às dificuldades dos professores e interpretes durante a abordagem de alguns conteúdos de Química para alunos com surdez. A pesquisa consiste em um estudo de caso nas Escolas Manoel Mano e Instituto Cearense de Estudantes Surdos, localizadas no Ceará, e faz uso de entrevistas com professores e intérpretes. O resultado da pesquisa revela que entre os conteúdos considerados mais difíceis para tradução e interpretação em Libras está a estequiometria. Além disso, são apresentados também relatos dos entrevistados a cerca da aprendizagem dos alunos com surdez. Verifica-se que, embora exista uma preocupação com a educação dos surdos, ainda existe um longo caminho a ser percorrido para uma educação alicerçada nos ideais da inclusão.
Palavras chaves
Ensino de Quimica; Libras; Aluno com surdez
Introdução
A discussão sobre educação inclusiva no Brasil vem ganhando destaque consideravelmente nos últimos anos, o que vem ocasionando mudanças no cenário educacional devido ao cumprimento de leis e decretos que compõem a Política Educacional Brasileira. Nesse cenário de mudanças, a educação para surdos ao longo do tempo vem ganhando destaque e o número de alunos surdos matriculados no ensino regular vem aumentando a cada ano. A disciplina de Química tem suas peculiaridades, e uma delas é lidar com conceitos muito abstratos e exigir dos estudantes o domínio de uma nova linguagem. Normalmente, essa tarefa é considerada difícil pelos alunos do ensino médio, o que leva ao pressuposto de que para os alunos surdos essa dificuldade seja mais acentuada. Tal dificuldade também perpassa pelo trabalho do professor e do intérprete, pois estes tem a difícil responsabilidade de garantir aos alunos com surdez o acesso aos conhecimentos químicos em uma língua desconhecida para maioria, a Libras. A realidade da maioria dos alunos surdos que cursam o ensino médio não é surpreendente, pois, desprovidos da audição, recebem o conteúdo químico em uma língua oralizada. A dificuldade na aprendizagem dos conteúdos curriculares de química não é exclusividade dos alunos que apresentam surdez, muitos alunos ouvintes também apresentam dificuldades no que se refere à compreensão dos conceitos químicos ensinados. No que se refere a esta realidade, Torriceli (2007, p. 16) afirma: “A aprendizagem da Química passa necessariamente pela utilização de fórmulas, equações, símbolos, enfim, de uma série de representações que muitas vezes pode parecer muito difícil de ser absorvida”. Os pesquisadores Quadros e colaboradores (2001, p.12) fazem suas considerações mostrando a importância do professor para ligação entre o mundo concreto e o abstrato no aprendizado dessa disciplina: Esta ciência trabalha situações do mundo real e concreto cujas explicações, na maioria das vezes, usam entidades do mundo chamado microscópico, tais como átomos, íons, elétrons, entre outros. Navegar neste mundo infinitamente pequeno e, portanto, abstrato, usando essa abstração para explicar o mundo real, é difícil para uma parte significativa dos estudantes. Consideramos que o trabalho do professor poderia se dirigir exatamente para a ligação entre esses dois mundos – macroscópico/ concreto e microscópico/abstrato – dando significado aos conteúdos químicos. Nessa perspectiva, não é simples o papel do professor de Química como mediador no processo de construção do conhecimento científico dos alunos. Tratando-se de alunos surdos então, a situação se configura como um grande desafio, pois devido à falta de sinais apropriados para conceitos químicos na Libras e ao fato da maioria dos indivíduos desconhecer essa língua, o professor tem dificuldade em eliminar barreira que prejudica o processo de ensino e aprendizagem, caracterizada pela falta de comunicação. Diante desta realidade, destaca-se a atuação do intérprete, profissional responsável pela tradução e interpretação dos conceitos químicos para Libras e indispensável para o processo de ensino e aprendizagem dos alunos com surdez. Assim, a presente pesquisa teve como objetivo principal investigar junto aos professores quais os conteúdos de químicas são mais difíceis para serem trabalhados em sala de aula pela falta de comunicação efetiva com aluno surdo. Da mesma forma, buscou-se investigar também, junto aos interpretes, quais conteúdos sofriam mais prejuízos na tradução pela ausência de sinais em Libras.
Material e métodos
A presente pesquisa é de cunho descritivo, onde o procedimento metodológico utilizado foi um estudo de caso desenvolvido na Escola Estadual Manoel Mano e Instituto Cearense de Estudantes Surdos, denominadas de Escola A e Escola B, ambas pertencente a rede estadual de ensino do Estado do Ceará. A realização da pesquisa constou de entrevistas com os professores e intérpretes das referidas escolas. Os mesmos serão mencionados utilizando-se as expressões I1, I2, I3 e I4 para intérpretes e PQ-1, PQ-2, PQ-3 e PQ-4 para professores de química. Os instrumentos utilizados para a coleta de dados foi um questionário, o qual apresentava questões abertas sobre a dificuldade na abordagem dos conteúdos de química para alunos com surdez. A abordagem da pesquisa é qualitativa, visando uma maior compreensão do discurso dos entrevistados. Segundo Bogdan e Biklen (1982 apud DUARTE 2002) uma das principais características da pesquisa qualitativa refere-se aos dados coletados que são predominantemente descritivos; segundo os autores “Todo material obtido através das observações descrevam situações, pessoas, depoimentos, fotos e ambientes, dessa maneira para subsidiar afirmações ou esclarecer pontos de vistas, o uso das citações devem ser frequentes.[...] ” Duarte (2002). No que se refere ao método qualitativo afirma: “Apesar do método qualitativo apresentar riscos e dificuldades, revela-se sempre um empreendimento profundamente instigante, agradável e desafiador."
Resultado e discussão
No que se refere ao ensino de Química para alunos com surdez, os professores
de Química foram questionados sobre “Qual o conteúdo de Química os alunos
tiveram mais dificuldade de assimilar?”. Já no caso do intérprete, a
pergunta reportou-se à tradução, ou seja, “Entre os conteúdos ensinados até
a presente pesquisa, quais aqueles considerados mais difíceis para tradução
e interpretação em Libras?”.
Eis as respostas: “Soluções, este assunto é primordial para o ano todo do
segundo ano. Se o aluno sentir dificuldade nesse tópico, compromete o ano
todo.” (PQ-1 Escola A); “Reações, termoquímica (lei de Hess)” (PQ-2 Escola
A); “Eletroquímica” (PQ-1 Escola B); “Soluções, celas eletroquímicas” (PQ-2
Escola B); “Cálculos estequiométricos, visto que há similaridade nos termos
e nos significados, a palavra é extensa e a datilologia torna-se complicada,
até encontrar um sinal específico que seja claro e compreensível para o
aluno” (I-1 Escola A); “Reações Químicas.” (I-2 Escola B). Eis a fala do
intérprete 1 da escola B:
Densidade, concentração e molaridade, eu observo que esses assuntos,quando
eu estudava no ensino médio, causavam bastante confusão entre nós ouvintes.
E trazendo para alunos surdos, é de forma muito abstrata que eles recebem
este assunto, porque são muitas fórmulas e fórmulas. Por exemplo, quando a
gente parte de algum exemplo no caso da concentração, a gente cita exemplo
de café, de açúcar,aquela parte do solvente, soluto, então, quando citamos
exemplos práticos da vivência, do dia a dia deles, eles começam a ter
interesse; mas quando lançamos isto em uma fórmula,aí o negócio complica.
Por exemplo: Densidade é igual a M sobre V, tem uma fórmula assim, aí tem a
concentração que é igual a M sobre V também, se eu não me engano, tem uma
que é M maiúsculo que é igual a n sobre v, então esses M’s repetidos
constantemente causam bastante confusão, porque são fórmulas muito
semelhantes no quesito de nomenclatura e causam bastante confusão. Sem
dúvida, esse é um dos assuntos mais difíceis, tanto na interpretação quanto
na compreensão deles (I-1 escola B).
As respostas dos professores e dos intérpretes apresentam certo consenso com
relação ao conteúdo de Química com maior dificuldade: dois entrevistados
responderam “reações químicas”; outros dois citaram “eletroquímica”; três
apontaram “soluções” e um sinalizou “cálculos estequiométricos”, que por
sinal está associado ao estudos das reações. Os conteúdos curriculares
apontados apresentam em comum o fato de envolverem fórmulas e resolução de
cálculos. A riqueza de detalhes nos depoimentos dos intérpretes que falaram
sobre as similaridades nos significados e nas repetições de letras nas
fórmulas são, de fato, embasadas. Considerando pesquisas sobre o ensino
desses conteúdos e o depoimento do intérprete 1 (Escola B), confirma-se que
esses temas causam confusão na compreensão dos alunos, independente da sua
condição de ouvinte ou não. Migliato (2005, apud Costa e Zorzi, 2008),
afirma em sua dissertação de mestrado que, dentre os assuntos que os alunos
apresentam maior dificuldade de compreensão está a estequiometria.. O
intérprete que fala sobre a dificuldade para interpretar conteúdos
relacionados a soluções, enfatiza que o impasse se dá por conta das
similaridades nos termos envolvidos e pela repetição de letras para fórmulas
diferentes.
Considerando-se que a maioria dos professores de química desconhece a Libras
e que a atuação do intérprete é fundamental para garantir aos estudantes
surdos o acesso ao conhecimento científico, perguntou-se aos professores
como eles avaliam o conhecimento químico dos intérpretes. Vejamos o
resultado no gráfico abaixo:
É importante destacar que, em seu depoimento, o intérprete 1 fala sobre a
dificuldade para interpretar conteúdos relacionados a soluções, o mesmo
enfatiza que o impasse se dá por conta das similaridades nos termos
envolvidos e pela repetição de letras para fórmulas diferentes. Sabe-se que,
na língua portuguesa, uma mesma palavra pode ter vários significados; o que
dá sentido é o contexto em que essa palavra foi usada. Na língua de sinais,
essa situação se apresenta de forma mais problemática, principalmente se o
intérprete não apresentar referências para interpretar e contextualizar o
que foi dito, impossibilitando ao aluno a compreensão de conceitos químicos
e de seus respectivos significados.
Conforme foi apresentado, percebe-se que na ausência de sinais em Libras
para o ensino de química, alguns conceitos químicos são passíveis de dupla
interpretação, como foi mencionado por um dos entrevistados quando deu o
seguinte exemplo: “[...] esses ‘Ms’ repetidos causam muita confusão”. Assim,
explicar para quem não domina com precisão a fala e a escrita, que a letra
“M” nas fórmulas significa massa, mas também pode significar molaridade (a
mesma letra, ainda, se for grafada duas vezes consecutivas (MM) representará
massa molar), é bastante difícil. Enfim, vê-se o uso de uma única letra para
a compreensão de três conceitos básicos (concentração, densidade e
molaridade). Essa situação é um tanto embaraçosa para os alunos que não
escutam e, além disso, as maiorias das aulas são meramente teóricas e
oralizadas, sem qualquer recurso didático para auxiliá-los na compreensão
desses conceitos.
Gráfico classificação do conhecimento químico do intéprete
Conclusões
Considerando-se os resultados obtidos nesta pesquisa, bem como o referencial teórico utilizado, verifica-se que, embora exista uma preocupação com a educação dos surdos, ainda existe um longo caminho a ser percorrido para que de fato esses indivíduos possam usufruir de uma educação alicerçada nos ideais da inclusão. O fato dos intérpretes apresentarem um nível de conhecimento químico razoável pode ser limitante na hora da interpretação e tradução dos conteúdos, pois pelo fato dos professores não falarem em Libras, fica com o interprete a difícil tarefa de mediar o conhecimento químico com os alunos portadores de surdez. No entanto, é válido ressaltar que muitos conceitos químicos são carentes de terminologias em Libras, o que pode influenciar e comprometer compreensão desses conceitos por parte dos alunos. Espera-se, assim, que as discussões aqui apresentadas contribuam de alguma forma com a prática dos professores de Química que lecionam para este público, favorecendo, dessa maneira, os processos de inclusão educacional.
Agradecimentos
Ao Programa de Ensino de Ciências e Matemática (ENCIMA) da UFC.
Referências
BOGDAN, R.; BIKLEN, S. Investigação Qualitativa em Educação. Coleção Ciências da Educação. Porto: Porto Editora, 1994.
DUARTE, R. Pesquisa Qualitativa: Reflexão sobre o trabalho de campo, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf.>. Acesso em: 24 set. 2011.
QUADROS, A. et al.; Ensinar e aprender Química: a percepção dos professores do Ensino Médio. Educar em Revista. n. 40. Curitiba, 2011. Disponivel em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0104-406020110002> Acesso em: 13 jul. 2014.
TORRICELLI, E. Dificuldades de aprendizagem no ensino de Química. 2007. Tese de livre docência. Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007.
ZANCAN, G. Educação Científica :Uma prioridade nacional. São Paulo: Perspectiva, 2000.
ZORZI, J. Distúrbios de linguagem em crianças pequenas: considerações sobre o desenvolvimento, avaliação e terapia da linguagem. In:Tratado de fonoaudiologia. LOPES FILHO, O. São Paulo: Roca, 1997.