ÁREA
Química Orgânica
Autores
Tavares, E.F.B. (UFRN) ; Oliveira, O.A. (UFRN) ; Mendes, G.S. (UECE) ; Costa, D.G.M. (UFRN) ; Silveira, K.L. (UFRN) ; Torres, F.M. (UFRN) ; Lima, R.F.M. (UFRN) ; Souza, D.B. (UECE) ; Almeida, R.A.F. (UFRN) ; Pereira, T.M. (UECE)
RESUMO
O papel, com o tempo perde sua consistência original, tornando-se amarelado, frágil e quebradiço. Esses sintomas são evidências da degradação periódica do mesmo, provocada, principalmente, pela acidificação das fibras de celulose. O presente trabalho tem o objetivo de restaurar o livro de titulo: “Relatório do Inspector de Hygiene do Estado do Ceará” de 1913 e torná-lo em um estado ótimo de manuseio e consulta. A restauração foi realizada em três etapas: 1. Higienização; 2.1. Tratamento aquoso (desacidificação), 2.2. Reestruturação do suporte (utilizando cola metilcelulose); 3. Acondicionamento da obra. O livro analisado teve um resultado bastante satisfatório, pois foi minimizado o prejuízo da fibra e a estética bastante restaurada, podendo novamente exercer sua função.
Palavras Chaves
Papel; Química; Restauração
Introdução
O ser humano descobriu que não bastava a memória para armazenar e passar sua cultura para seus descendentes, pois na oralidade fatos podem ser alterados. Então o papel, como suporte da informação, é um dos meios mais importantes para registro do conhecimento e da história. A obra que foi escolhida para este estudo de caso pertence ao acervo de Obras Raras da Biblioteca Pública Estadual do Ceará. É um livro de Titulo: “Relatório do Inspector de Hygiene do Estado do Ceará” de 1913 escrito por Tenente Coronel Marcos Franco Rabello, Brasileiro, natural do Ceará, militar e político. O papel é formado por fibras celulósicas que se entrelaçam umas com as outras, garantindo a sua resistência. A principal matéria-prima para a obtenção industrial dessas fibras é a madeira, proveniente do tronco das árvores. Além das fibras da madeira, também podem ser utilizadas as fibras de bambu, bagaço de cana, algodão, linho e sisal. Trapos de tecido também chegaram a ser empregados pelos chineses na produção de seus primeiros papéis (PEREIRA, 2004). A madeira é formada por vários tipos de células, cujas funções vão desde a sustentação da árvore e o transporte de líquidos até o armazenamento de suprimentos. As paredes das células da madeira são constituídas, essencialmente, por celulose. A celulose é um polissacarídeo formado pela ligação de milhares de monômeros de glicose produzidos durante a fotossíntese. As células da madeira são unidas por uma substância chamada lignina, que funciona como um cimento, dando-lhe rigidez e resistência (SILVA, 2011). Do ponto de vista químico, as fibras são formadas por interações entre as moléculas de celulose, proporcionadas pelas ligações de hidrogênio entre os grupos hidroxila dos monômeros de glicose. São essas interações que permitem a formação de folhas de papel (SILVA, 2011). Por degradação do papel, entende-se como a cisão da ligação entre moléculas de celulose e quebra das ligações entre os monômeros de glicose. Esse rompimento produz fibras com menor grau de polimerização, reduzindo o tamanho das moléculas formadoras das fibras de celulose, afetando, portanto, as propriedades do papel, como a resistência mecânica, que dependem do comprimento da cadeia molecular da celulose (VIGIANO, 2008). A degradação do papel é atingida por diversos fatores correlacionados, desde aspectos intrínsecos de composição do papel até aspectos ambientais no qual o papel é guardado, (VIGIANO, 2008). FATORES INTRÍSECOS DE DEGRADAÇÃO: Esses fatores estão relacionados à própria composição do papel e seus processos de formação. Em relação à constituição, um grande agravante na degradação é a presença de lignina residual, que é a quantidade de lignina presente no papel que não foi retirada no processo de branqueamento, pois a lignina pode sofrer oxidação facilmente e gerar ácidos com diferentes pesos moleculares que trazem efeitos nocivos para a celulose, contribuindo para o amarelecimento do papel (SALIBA et al., 1998). O processo de fabricação do papel também contribui para sua degradação, pois os aditivos (cargas, agentes de colagem, corantes e pigmentos) utilizados para conferir as propriedades desejáveis estão relacionados à formação de ácidos, contribuindo para a não permanência do mesmo. (VIGIANO, 2008). A presença de ácidos no papel é a principal causa de sua degradação, pois catalisa a hidrólise da celulose, quebrando as ligações glicosídicas entre as moléculas de glicose, diminuindo o grau de polimerização da celulose resultando no enfraquecimento mecânico do papel, (BARROW, 1959). Os ácidos encontrados no papel podem ser provenientes de diferentes fontes: ● A partir da hidrólise dos íons alumínio presentes no sulfato de potássio e alumínio KAℓ(SO4)2, conhecida como alúmen, utilizados na precipitação da colofônia (resina residual) na preparação do papel (HOLWARD, s/d); ● A partir da poluição atmosférica (HUDSON, 1967); ● A partir da migração de substâncias ácidas de materiais de embalagens em contato com o papel, chamado de efeito de migração. (SLAVIN, 1992). FATORES EXTRÍNSECOS DE DEGRADAÇÃO O papel, mesmo aquele que possui propriedades físicas e químicas que o façam durar séculos, sofre influências externas, ou seja, que não estão diretamente relacionadas com sua constituição química. Esses agentes externos são responsáveis por acelerar o envelhecimento do papel e podem ser classificados em quatro classes: ● Físicos: Luminosidade, temperatura e umidade; ● Químicos: Acidez do papel, poluição ambiental e tintas utilizadas; ● Biológicos: micro-organismos, insetos, roedores; ● Antropogênicos: manuseio incorreto e acondicionamento inadequado. Como objetivos principais para elaboração desse trabalho temos: mostrar o processo químico envolvido na restauração de um livro (papel) e disseminar o conhecimento sobre as técnicas de preservação, conservação e restauração do papel.
Material e métodos
1. DESMONTE DO LIVRO: Inicialmente foi preparado o esquema de encadernação do livro, para que após o término dos procedimentos o encadernador pudesse restabelecer a encadernação original. Em seguida, foi realizada a separação das folhas, pois o tratamento é aplicado em cada folha. Logo após, realizou-se a numeração das folhas (SILVA, 1984). 2. HIGIENIZAÇÃO: Depois da análise da obra, inicialmente passou-se a trincha com muita delicadeza para uma limpeza superficial folha a folha. Posteriormente, para retirada de pontos de oxidação foi utilizado o bisturi. Todos os procedimentos de higienização foram realizados com material de uso pessoal apropriado (luvas, mascaras, jaleco) e em um local específico chamado de câmera de sucção para a deposição dos resíduos (SPINELLI, 1997). 3. TESTES QUÍMICOS: Antes da realização dos procedimentos subsequentes foram feitos alguns testes químicos (BANSA, 1986): 1) pH: através da fita para medição de pH Macherey-Nagel, no qual identificou- se que o papel estava ácido em sua totalidade com pH variando de 4 a 6; 2) Solubilidade: todas as folhas foram submetidas ao contato direto com os reagentes utilizados para verificação da permanência da tinta presente na folha e verificou-se que a tinta é praticamente insolúvel nos reagentes empregados. 4. LAVAGEM DO PAPEL (BANHO): Na lavagem do papel, empregou-se o processo mecânico de lavagem do papel com água deionizada. O papel depois de higienizado e testado passou pela primeira etapa da restauração química, no qual a folha é colocada entre duas telas de náilon e imersa em uma cuba contendo água deionizada. Para esta obra específica foram utilizadas três cubas: CUBA 1: com água deionizada quente ( 40°C) CUBA 2: com água deionizada fria ( 23°C); CUBA 3: com água deionizada fria com álcool etílico comum na proporção de 3:1 (água-álcool). Nas três cubas, em sequência, a folha foi colocada por dez minutos (D´ALMEIDA, 1998). 5. DESACIDIFICAÇÃO AQUOSA: Nesta etapa, após a lavagem, colocou-se o papel novamente entre as telas de náilon em uma quarta cuba contendo solução de hidróxido de cálcio P.A. 0,2% por 10 minutos. (PEREIRA, 2006). Esse procedimento é o responsável direto pelo tratamento químico que o papel sofrerá, por isso também é chamada pelos restauradores de banho químico. Depois de realizado a desacidificação, as folhas molhadas foram colocadas em uma estufa natural por 24 horas para secagem. 6. REINTEGRAÇÃO MECÂNICA: Para folhas rasgadas, colocamos sobre o papel absorvente a tela em tecido e sobre esta a folha danificada. Simultaneamente passamos a dobradeira de osso, pressionando levemente a junção das rebarbas para unilas melhor e deixamos secar. Recortamos o excesso de papel japonês, passamos uma leve camada de cola metilcelulose para melhor assentar o papel japonês recortado. Este procedimento é conhecido por velatura. Por último, prensamos com placas de vidro depois do papel seco (MOTA, 1981). Após todo o processo, ele foi encadernado e acondicionado.
Resultado e discussão
A higienização do acervo é de fundamental importância para a longevidade dos
documentos. Tem o objetivo de eliminar todas as sujidades presentes no livro,
pois a poeira, combinada com condições inadequadas de temperatura e umidade
relativa, escurece a tonalidade do papel e ocasiona manchas muitas vezes
irreversíveis, como pontos de ferrugem ou de oxidação (também chamados de
foxing, por lembrarem a cor de um tipo de raposa, fox, em inglês). Jaime
Spinelli, 1997, afirma que o termo higienização tem dois sentidos: O primeiro
é médico: parte da medicina que propaga os meios para conservar a saúde e
prevenir enfermidades, indicando ao homem quais são suas necessidades orgânicas
e de que maneira deve satisfazê-las para conservar-se saudável. O outro é
pedagógico: numa dupla perspectiva, a que ensina a higiene corporal de uma
pessoa e a que refere à higiene escolar propriamente dita. (SPINELLI, 1997).
Após higienização das folhas observou-se que a poeira e parte dos pontos de
oxidação presente nas folhas do livro foram removidas, de modo que as deixamos
adequadas para o próximo passo. Os testes que foram realizados nas folhas
demostraram que, além do papel estar ácido em sua totalidade com pH variando de
4 a 6, verificou-se que a tinta é praticamente insolúvel nos reagentes
empregados (água deionizada, álcool comum e hidróxido de cálcio P.A.). Na
lavagem do papel utilizou-se água deionizada, pois é uma água livre de íons e
com a carga elétrica neutralizada para não interferir em reações químicas no
papel (D´ALMEIDA, 1998).
Nessa etapa, após o processo de lavagem das folhas em cubas, houve os seguintes
resultados: Cuba 1: Retirada de impurezas solúveis em água, ocasionada pela
atração intermolecular com a água deionizada. Cuba 2: Morte de alguns micro-
organismos sensíveis e danosos ao papel, resultante da variação de temperatura
(BATISTA, 2001); Além de ajudar na remoção de impurezas polares que não foram
totalmente extraídos do papel durante a passagem pela cuba 1. Cuba 3: resultou
no afastamento das cadeias celulósicas através de interações intermoleculares
do tipo pontes de hidrogênio para facilitar a próxima etapa do processo
(D’ALMEIDA, 1988).
O banho químico foi realizado, logo em seguida, visando eliminar um dos
principais problemas da degradação do papel: a acidez. A redução do índice de
acidez (pH) aumenta a velocidade das reações de ruptura das ligações α 1 – 4
glicosídicas, que unem as moléculas de glicose, que formam a celulose. O
rompimento dessas interações químicas causa a quebra de ligações intra e
interfibrilares, tornando o papel rígido, frágil e quebradiço, devido à perda
de flexibilidade (BANSA, 1986). Existem muitas bases inorgânicas utilizadas
para neutralizar os ácidos presentes no papel, porém por questões ambientais,
os restauradores preferem o hidróxido de cálcio (Ca(OH)2).
Além de minimizar os efeitos dos ácidos presentes no papel, a desacidificação
também inclui a deposição de um excesso destes agentes no interior do papel, o
que constitui a reserva alcalina. Essa reserva é importante para que o papel
possa suportar a invasão de ácidos futuros, principalmente oriundos do meio
ambiente (SILVA, 2012). Concluído a etapa do banho foi realizada a reintegração
mecânica com reforço, que consiste em devolver ao documento com áreas faltantes
a mesma quantidade de massa perdida através do processo de formação de papel na
Maquina Obturadora de Papel – MOP.
Foi empregada uma técnica de reforço simultâneo que é uma folha de baixíssima
gramatura (papel japonês) adicionada ao suporte para ajudar na aderência do
novo papel para devolver sua resistência e condições de manuseio (BECK, 1995).
A obra, então, foi encadernada de acordo com a original. E para finalizar a
restauração, a obra foi acondicionada em um invólucro de poliéster, pois o
mesmo é bastante inerte em relação as caixas comuns. Essa medida visa aumentar
a vida útil do papel (RODRIGUES, 2007).
Para uma melhor visualização dos resultados obtidos, as figuras 1 e 2 mostram
como ficou a obra restaurada, fazendo uma comparação com a própria obra antes
da restauração.
Papel antes da restauraçao
Papel depois da restauraçao
Conclusões
Quando um livro está desgastado, sujo, com sinais de ataques de insetos, significa que foi tratado com descaso, deixando que a ação dos agentes não imediatos o danificasse. Mas também existem os agentes imediatos, que são devastadores, de difícil previsão e seus danos são quase sempre irreversíveis, necessitando de socorro rápido para evitar a perda de informação. A preservação e conservação de documentos com suporte em papel devem ser priorizadas, pois, se forem eficientes, evitarão sua degradação e, consequentemente, a perda de informação. A restauração é a última tentativa de salvar o documento e necessita de mão-de-obra especializada e dispendiosa, por isso deve ser evitada ao máximo, buscando preservar e conservar para não haver a necessidade de restaurar. Todavia para os casos que necessitam de intervenção química, este trabalho, de forma inovadora e ousada, demostra que é possível retornar o papel para um estado ótimo de integridade e manuseio, o que nos leva a considerar que os objetivos foram amplamente alcançados. Assim sendo, o livro poderá novamente exercer sua função como suporte de informação e como registro de memória. Todavia para realizar o processo de restauração, deve-se seguir uma série de princípios que visam, em geral, manter as raízes do objeto, ou seja, conservar suas características históricas, artísticas e materiais, principalmente em se tratando de obras raras, assim como foi feito no estudo de caso apresentado neste trabalho. É importante salientar que toda intervenção feita deve ser sutil, identificável e reversível, buscando restabelecer o objeto e permitindo que uma futura intervenção seja viável. Estão evidenciadas também a importância e auxílio do profissional de química na restauração de papel. Porém entendo que a conservação de livros é uma política que deve ser divulgada independente da formação e área profissional do indivíduo. Neste aspecto é necessária muita divulgação de trabalhos desta ordem para disseminar a informação.
Agradecimentos
Agradeço a Deus, e exalto o seu nome. A minha esposa Gabrielly pelo apoio incondicional, ao professor Ótom Anselmo e Ana Cristina pela orientação, a CAPES, a UFRN, aos colegas de mestrado e aos meus pais por toda dedicaçao.
Referências
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