Autores
P. N. Santos, G. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS) ; N. S. V. Garcia, F. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS) ; A. L. Silva, T. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS) ; C. Benite, A.M. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS)
Resumo
O presente trabalho é resultado do desenvolvimento e aplicação de uma intervenção
pedagógica (IP) que teve como objetivo realizar o deslocamento epistêmico no ensino de
química a partir de produção de pigmentos em Kemet. Os resultados compreenderam a
avaliação da compreensão dos participantes sobre a representação e o conceito de
elemento químico, a partir da análise das falas produzidas através da ação da IP.
Palavras chaves
KEMET; QUÍMICA; LEI 10.639/03
Introdução
A civilização kemética empregava diversas técnicas para obtenção de pigmentos.
Sintéticos e naturais, faziam parte da paleta de cores utilizadas em obras que
retratavam esta sociedade. Os keméticos sintetizaram o pigmento azul mais antigo do
mundo, o azul egípcio. A relativa complexidade da síntese desse material sugere
avançada compreensão sobre processos químicos (VOLPE, 2018). A cor resultante era
dependente da matéria-prima e temperatura empregados no processo de obtenção (SAKR
et al., 2020). Diferentemente, os pigmentos naturais eram obtidos através da moagem
de minerais importados e extraídos do próprio território (VOLPE, 2018). Localizado
no nordeste do continente Africano, Kemet foi berço de uma das civilizações mais
importantes da antiguidade (RIBEIRO, 2017), cujas produções científicas e
tecnológicas são fruto do profundo e desenvolvido conhecimento humano (VOLPE, 2018).
Os keméticos são negros. No entanto, o racismo nega a humanidade (e a
identidade) desses sujeitos e destitui a capacidade de produzir cultura e
civilização. Em oposição ao racismo, podemos possibilitar percepções e práticas
alternativas que promovam o deslocamento dos discursos hegemônicos que reiteram
poderes e saberes consolidados e as sujeições por eles produzidos (CARNEIRO,
2005).Concordamos com Silva e colaboradores (2020) que a história dos sujeitos
africanos, suas tecnologias e conhecimentos para produção de pigmentos são contextos
de apresentação para os conceitos químicos no ensino médio em acordo com a lei
10.639/03. Considerando tais informações, o presente trabalho teve como objetivo
realizar o deslocamento epistêmico no ensino química a partir de contribuições
científicas e tecnológicas africanas.
Material e métodos
A pesquisa foi realizada em uma turma composta por dez estudantes da escola básica e um
da graduação, integrantes de um projeto de iniciação científica júnior realizado no
Laboratório de Pesquisa em Ensino Química e Integração, LPEQI, da Universidade Federal
de Goiás. Este projeto intitulado Afrocientista (Associação Brasileira de Pesquisadores
Negros/ Instituto Unibanco) proporciona a iniciação científica e letramento racial de
jovens negros/as do ensino médio.
A intervenção pedagógica (IP) abordou sobre “Kemet, a química e as cores”. Segundo
Damiani e colaboradores (2013) intervenções pedagógicas são investigações que envolvem
planejamento e implementação de inovações destinadas a produzir mudanças nos processos
de aprendizado de sujeitos que delas participam. Sob orientação da professora
pesquisadora (PQ), a IP foi desenvolvida a partir do planejamento das atividades para o
ensino de química com abordagem interdisciplinar. A ação pedagógica da professora em
formação continuada (PF) foi gravada por áudio e vídeo. Os dados obtidos foram
transcritos e analisados de acordo análise de conversação (MARCUSCHI, 2003).
Resultado e discussão
Será apresentado um recorte de momento discursivo realizado no segundo semestre de
2022. No Extrato 1 indicamos os resultados da IP em que os/as alunos/as discutem
sobre a representação dos elementos químicos e processamento do ouro. Através da
pergunta realizada por PF, que convoca os/as participantes a falarem sobre o que os
elementos químicos representam, A1 e A2 apresentam suas respostas: enquanto A1 traz,
a partir da leitura do seu material de estudo, uma definição sobre elemento químico
que foi anteriormente comentada em atividades online e cuja autoria é da IUPAC
(1997), A2 traz uma exemplificação sobre elemento químico. Apoiados em Mortimer e
Carvalho, defendemos que é nos processos conversacionais entre alunos e professores
que se constrói o conhecimento em sala de aula (ALVINO et al., 2020). No contexto da
IP, A2 traz uma expressão que não é própria da linguagem científica (“é tipo”),
apesar de fazer uma relação entre elemento químico e o átomo de cobre. Segundo Díaz
(2011) todas as aprendizagens tem como base a formação de conceitos, que são
conclusões mentais produtos de uma abstração generalizável. Como operações mentais,
a abstração e generalização são utilizadas pelo ser humano para diferenciar e
agrupar os elementos da realidade:
Uma abstração somente considera aquilo que é essencial nas características gerais de
algo, ou seja, não considera o que é comum para diferentes coisas e, sim, o que é
único para esse algo. Portanto, tal exclusividade define esse algo; assim, a
generalização é a conclusão a que chegamos a partir do acúmulo de experiências
similares com grupos de pessoas, objetos, situações etc., e que nos permite incluir,
num mesmo grupo, diferentes coisas que de forma “geral” são iguais (DIÁZ, 2011, p.
120). O conhecimento prévio de A1 sobre elemento químico possibilitou a elaboração
de uma definição própria para o mesmo. No momento em que A1 apresenta essa
definição, o/a estudante na sua fala considera o que é essencial para o entendimento
do termo, quando indica que é “átomo com mesmo número atômico”. No entanto, através
da fala de A2, presume-se a generalização do termo através da indicação de que
elemento químico “é tipo cobre”, pois na intervenção foi indicada que o cobre é um
elemento químico. Conforme a aplicação da IP, a mineração é citada por A3 como
atividade empregada para o processamento de minério, que é um depósito mineral
suficientemente concentrado para permitir a extração economicamente viável do metal
desejado (CHANG; GOLDSBY, 2013). Em Kemet, como se refere Yoyotte (2010), a
importância do deserto residia na variedade de recursos minerais que oferecia e uma
das riquezas que o país extraía era o ouro, que em civilizações mais recentes
desempenharia um papel econômico fundamental. Na voz de A3, convocada a partir da
fala retirada de um dos slides de PF sobre o signo kemético, é observado o uso do
vocábulo minério, não utilizado anteriormente por PF, bem como a indicação do uso da
técnica de extração nos dias atuais. A citação de A3 indica o contato sobre o
assunto utilizado para contextualização, já que informa que “faz mineração” (como
discente do curso técnico de mineração). No contexto apresentado, a fala de A3
reforça a informação apresentada sobre a prática de extração de minerais realizada,
inclusive, pelos keméticos. Concordamos com Camargo e colaboradores (2019) que
conceitos e conteúdos de química devem ser o foco principal de ensino em aula de
química e que a contextualização amplifica a trama de significações que estruturam o
conceito estudado. A partir do estabelecimento da relação entre os povos negros e o
conhecimento químico, são desconstruídas visões racistas de que somente o europeu
seria agente reflexivo e ativo transformador da sua realidade por meio do trabalho.
Os africanos transformavam a matéria, logo foram também os alicerces da ciência de
hoje.
A imagem evidencia trechos dos discursos durante a intervenção pedagógica retratada neste trabalho.
Conclusões
O presente trabalho se configura como uma possibilidade de deslocamento epistêmico no
ensino de química, utilizando como contexto o processamento de minerais realizados
pelos keméticos para obtenção de materiais, como os pigmentos. A referida proposta está
de acordo com a lei 10.639/03, promovendo oposição ao racismo e proporcionando a
construção de uma identidade negra em que os sujeitos africanos sejam atores de
desenvolvimento científico e tecnológico.
Agradecimentos
Ao Laboratório de Pesquisa em Ensino, Química e Inclusão, LPEQI, da Universidade
Federal de Goiás, UFG, ao Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e
Matemática da UFG. À ABPN e ao Instituto Unibanco.
Referências
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