Reflexão e Ação no Estágio de Regência: o processo de construção de materiais didáticos sobre conceitos iniciais da Química

ISBN 978-85-85905-25-5

Área

Ensino de Química

Autores

Bastos, C.S. (LICENCIADA PELA UNEB) ; Moreira, B.C.T. (UNEB)

Resumo

O objetivo do trabalho é discutir o processo de elaboração de uma apostila e um jogo didático (JD), produzidos por uma estagiária, voltados a conceitos básicos da Química. A Apostila, direcionada ao Ensino Médio, foi construída a partir da análise de livros didáticos, nos quais se observaram inadequações de linguagem. Na aplicação do JD identificou-se o uso da Apostila pelos estudantes, em substituição à forma de escrita encontrada no livro da escola. O JD foi, também, aplicado para estudantes do curso de Licenciatura em Química da UNEB. As dificuldades dos recém-ingressos e a perplexidade de grande parte dos outros estudantes, em relação à adequação de linguagem, corroborou a percepção da estagiária sobre a necessidade de rediscussão, reflexão e reescrita de alguns conceitos básicos.

Palavras chaves

Estágio Supervisionado; Obstáculo de Aprendizagem; Livros Didáticos

Introdução

Ao final dos cursos de graduação, os estudantes das licenciaturas se deparam com o exercício efetivo da regência, fechando o ciclo de componentes constituintes do Estágio Supervisionado (ES). Conforme a Lei nº 11.788, artigo I, § 2º: “O estágio visa ao aprendizado de competências próprias da atividade profissional e à contextualização curricular, objetivando o desenvolvimento do educando para a vida cidadã e para o trabalho.” (BRASIL, 2008). No curso de Licenciatura em Química (LicQui), da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), é no ES IV que o licenciando pode, e deve, por em prática os conhecimentos adquiridos, associando os conteúdos pedagógicos e químicos. Ademais, é o momento de mostrar sua criatividade, independência e caráter e, baseado no repertório construído no decorrer da formação, entrelaçar os saberes profissionais, pessoais, cognitivos e afetivos. (BERNARDY e PAZ, 2012). No decorrer do ES IV, os estagiários são levados a aguçar, ainda mais, o senso crítico com relação aos conteúdos químicos. A partir disto, diversos questionamentos e reflexões acerca da forma de abordagem e da adequação de linguagem quanto à exposição de conceitos vêm à tona, exigindo de cada estagiário um maior esforço para proceder à transposição didática. No que concerne ao ensino da Química, uma das principais constatações é a diversidade na apresentação de conceitos estruturantes, aqueles considerados essenciais para a compreensão desta ciência, que permitiram sua transformação e “a elaboração de novas teorias, o uso de novos métodos e novos instrumentos conceituais.” (GAGLIARDI, 1988, p. 294). Seguramente, diante da característica da língua portuguesa, no Brasil, de apresentar palavras polissêmicas, dificilmente encontramos um determinado conceito químico escrito exatamente da mesma forma nos livros didáticos (LD). Entendemos ser este um dos principais desafios enfrentados no Ensino de Química, por professores formadores, por aqueles que já atuam na escola e, sem dúvida, pelos estagiários. Nossa defesa sobre a possibilidade do desenvolvimento da criticidade no ES IV é sustentada em Lima (2008) que destaca o Estágio como o campo de conhecimento referentes a estudos e reflexões sobre os processos de ensino e aprendizagem, pautadas na pesquisa das ações executadas. Compreendemos ser preciso que o estagiário vá além e torne-se crítico em relação, por exemplo, aos materiais didáticos (MD) utilizados para o estudo, ao planejamento, à elaboração e à execução das aulas e atividades. Em geral, por razões diversas, dentre elas a falta de tempo, a carga horária excessiva e a necessidade de trabalhar em diferentes escolas, os professores elaboram suas aulas a partir dos MD disponíveis, tais como livros didáticos e vídeoaulas, muitas vezes sem analisar, inuciosamente, a adequação da linguagem. Durante a formação inicial, a maior parte dos estudantes tem o tempo mais livre, sendo assim, acreditamos que a dedicação sobre esta vertente pode ser mais apurada, principalmente se encontrarem reforço nas discussões com professores pesquisadores do Ensino de Química. Em muitos MD, encontram-se equívocos conceituais, frases mal elaboradas e problemas de conexão no decorrer do texto, além de outros aspectos que justificam e tornam necessária a ação reflexiva dos estagiários no decorrer da regência. Em relação aos equívocos conceituais, principal problema em nossa percepção, o professor deve estar atento para utilizar, sempre, o termo mais adequado, apresentando os conceitos tanto na expressão oral quanto na representação escrita, sem ambiguidades de significados. A linguagem inadequada pode levar ao obstáculo de aprendizagem, defendido por Lopes (1992) como sendo proveniente de associações não racionalizadas e metáforas descuidadas que restringem a compreensão científica. A origem deste trabalho reflete o pensamento de que “É no período do estágio supervisionado que o acadêmico, futuro professor, percebe a possibilidade de utilizar os conhecimentos teóricos na prática, sempre procurando fazer uma reflexão depois de cada aula, em busca de melhorias e transformações ao longo deste período e com certeza as mudanças continuam no decorrer do seu cotidiano [...]” (SCALABRIN e MOLINARI, 2013, p. 10). Foi no exercício de reflexão sobre suas aulas simuladas, enfrentando o desafio de superar as próprias dificuldades, tais como a de analisar criticamente as informações contidas nos diferentes livros e selecioná-las, que uma das autoras, enquanto estagiária, percebeu a necessidade de sair dos muros dos LD e exerceu a proatividade e a autonomia essenciais à docência. Neste contexto, o objetivo deste trabalho é discutir o processo de elaboração de dois MD, uma apostila e um jogo didático (JD), no decorrer do Estágio de Regência, voltada para a escrita de conceitos básicos, iniciais, para a compreensão da Química, buscando utilizar a linguagem adequada, sem ambiguidade e fidedigna ao significado químico.

Material e métodos

Para elaborar a apostila foram utilizados, como fontes de dados, quatro livros didáticos, identificados pelo símbolo LD seguidos dos algarismos 1 a 4, e o Gold Book da União Internacional de Química Pura e Aplicada (IUPAC). Com base no planejamento para a disciplina Química, no Colégio Estadual Thales de Azevedo (CETA) – Salvador/BA, a estagiária elaborou o seu plano de regência e, a partir deste, procedeu-se à identificação dos conceitos básicos necessários à compreensão da Química a serem abordados nas aulas. Com enfoque qualitativo, na pesquisa bibliográfica realizada, discutiremos a forma de apresentação de alguns destes conceitos, argumentando as modificações propostas para a reescrita na Apostila e posterior utilização no JD elaborado. Os LD selecionados, explicitados no decorrer da discussão, exceto o LD2, foram os adotados nas escolas cujos estágios de regência ocorreram, no semestre letivo de 2017.1, incluindo o Química Cidadã, volume 1 (LD1), adotado nas turmas do 1º ano do CETA. A apostila, disponibilizada aos estudantes no formato PDF, através de e-mail, foi confeccionada utilizando o software Power Point. Além dos conceitos selecionados, constam na apostila: imagens retiradas do Google (de licenças de utilização livres); gráficos, elaborados pela estagiária com o programa Paint; exercícios, atividades lúdicas e dicas de leituras no LD1. A apostila serviu de suporte para a produção do JD QuiTroca-Troca, no qual os estudantes, por associação de termos e representações imagéticas, devem formar pares utilizando a linguagem mais adequada para apresentar um determinado conceito. As cartas e as regras do jogo foram feitas no Word, e impressas a jato de tinta – as cartas em papel Carmen (plastificadas posteriormente) e as regras em papel A4 comum. Na aplicação do jogo, as cartas foram espalhadas sobre uma mesa, com as informações voltadas para cima, e os estudantes, disputando em duplas (um contra o outro) combinaram as cartas, duas a duas, sem deixar sobrar nenhuma. Os pares formados poderiam ser trocados durante o jogo. Com o conceito elaborado escrito em uma folha apropriada, as respostas foram compartilhadas e discutidas, de modo que os próprios estudantes explicassem, uns aos outros, suas associações, podendo recorrer às informações da Apostila sempre que necessário. No LicQui/UNEB, o jogo foi aplicado com estudantes recém-ingressos (no semestre 2017.1) e em níveis mais adiantados, utilizando uma dinâmica diferente, pois não se tinha o objetivo de avaliar o uso da Apostila como fonte de estudo, mas, sim, identificar se os estudantes conceituam os termos com linguagem adequada. Neste caso, as cartas dispostas na mesa ficavam com seus conteúdos voltados para baixo, mas mantendo-se os outros aspectos da dinâmica adotada no CETA. Ao virarem as cartas, um por vez, os estudantes tentavam, se possível, fazer associação com uma segunda carta. Caso contrário as cartas eram devolvidas à mesa.

Resultado e discussão

Na análise do LD1 notou-se que os autores ao se referirem a alguns termos corriqueiros da linguagem Química deixavam diversas lacunas: ou por não explicitarem o conceito, ou por cometerem equívocos, ou, ainda, por utilizarem frases confusas. Em função disto, nasceu a ideia de elaborar uma apostila com o propósito de dar suporte aos estudantes no decorrer da leitura do livro. A Apostila, cuja confecção ocorreu em paralelo ao planejamento das aulas do estágio de regência, foi delineada com os seguintes tópicos: Introdução à Química; O que é matéria?; Átomo; Íon; Molécula; Substâncias e Misturas. A discussão sobre o processo de elaboração da Apostila será pautada nos termos átomo, íon e molécula, pois, como será demonstrado, se encaixam em algumas das situações identificadas como lacunas. Foi preciso analisar criteriosamente os conceitos e informações contidas no LD1 e, na medida em que as inadequações de linguagem eram identificadas, a análise foi estendida para os outros LD selecionados e para fontes da IUPAC. Neste processo, de leitura, análise e comparação, nos quais foram notadas ambiguidades, confusões e equívocos em relação aos conceitos básicos investigados, se deu a reestruturação dos mesmos; e posterior inserção na Apostila. A atenção estava voltada para sanar as falhas encontradas, e expressar os conceitos de forma direta, clara e sem ambiguidade. Não estamos aqui defendendo que os conceitos sejam decorados pelos estudantes. Não é este o foco. Mas, é preciso um esforço e atenção adicionais em propiciar, aos estudantes, a compreensão dos conceitos, assim, estes devem ser esclarecidos e explicitados adequadamente: tanto na fala, do professor; quanto na escrita, no quadro e no LD. No entanto, como será demonstrado adiante, não é isto o que ocorre em algumas situações. Na fala de estudantes, com os quais convivemos nos bancos da universidade, e até de professores, ou nos textos dos LD, é comum perceber que, em vez de explicitar o conceito, são colocados exemplos, relativos ao mesmo. Desta forma, o conhecimento vai sendo construído numa base frágil, sem as conexões que alicerçam a apreensão. E, posteriormente, quando se tem a necessidade de um resgate ou explicação mais apurada os equívocos são evidenciados. O conceito de átomo, de modo geral nos LD consultados, não é apresentado diretamente, dando-se destaque à explanação de alguns modelos atômicos. É importante mostrar a trajetória da Ciência, entretanto, é igualmente importante esclarecer para os estudantes os significados dos termos utilizados, para melhor compreensão a respeito do que se estuda, evitando erros futuros. Os autores do LD1, reforçam a ideia de átomo proposta nos primeiros modelos atômicos, a exemplo da teoria atômica de Dalton, segundo a qual o átomo é a menor partícula constituinte da matéria. Muito longe das constatações experimentais atuais. Com o intuito de deixar claro, de forma objetiva o que é um átomo, na Apostila enunciamos: “Átomo é uma partícula neutra (ou seja, de carga elétrica igual a zero) constituída de três tipos de subpartículas fundamentais: os prótons e nêutrons, localizados no núcleo; e os elétrons, localizados na eletrosfera.”. Reforçamos a importância da informação de a carga elétrica ser igual a zero, para que o leitor se atente ao fato de que se a carga elétrica for diferente de zero, já não estamos nos referindo a átomos. A análise do termo íon evidencia melhor a necessidade deste reforço. No LD1, íons são “átomos ou grupos de átomos que têm número de elétrons diferente do de prótons” (SANTOS e MÓL, 2013, p. 162). Sendo assim, o estudante pode chegar à conclusão de que existem íons que são átomos. Este é o equívoco mais frequente. Durante as aulas no CETA, alguns estudantes definiram íons como “átomos carregados”, expressão encontrada no LD2 de Souza (2016, p. 320). No LD3, dos mesmos autores do LD1, “os íons são átomos ou grupos de átomos que ganharam ou perderam elétrons, ficando eletricamente carregados” (SANTOS e MÓL, 2005, p. 194). Da forma colocada é compreensível a fala do estudante de que íons são átomos carregados. Depreende-se que íons são átomos; bem como existem átomos carregados. Dois graves equívocos. Na tentativa de sanar os equívocos e as possíveis ambiguidades, os quais propiciam a existência de obstáculos de aprendizagem e incompreensão dos conceitos, na Apostila, apresentamos o seguinte conceito para íon: “é uma partícula eletricamente carregada, resultante de um átomo ou molécula que perdeu ou ganhou um (1) ou mais elétrons.”. Para o nível inicial de conhecimento da Química, no qual se encontram os estudantes de 1º ano do EM, defendemos que o conceito da forma colocada impossibilita o estudante chegar à conclusão de que átomos são íons. Mais adiante, com o conceito básico acomodado e sendo apresentado a novos conhecimentos o estudante poderá compreender que existem outras formas de um íon ser originado. Por exemplo, existe o cátion amônio oriundo da molécula de amônia, mas não devido à perda de elétrons. Em relação às moléculas, no decorrer do LD1, os autores afirmam que elas podem ser constituídas por átomos, iguais ou diferentes, entretanto, o conceito não é explicitado. Um estudante mais atento, ou curioso, haveria de perguntar, mas, afinal, o que são moléculas? O trecho a seguir, ilustra a subjetividade relativa à abordagem do termo: “Os químicos denominam as partículas constituintes do açúcar de molécula de sacarose e as partículas constituintes da água de moléculas de água. Nem todas as partículas constituintes da matéria são moléculas” (SANTOS e MÓL, 2013, p. 83). No LD3, tem-se molécula “como uma entidade constituída por um número definido de átomos que têm existência independente.” (SANTOS e MÓL, 2005, p. 217). No LD4 o conceito é colocado em nossa compreensão de forma bem confusa devido às informações complementares: “Molécula é a menor partícula de uma substância capaz de existir isoladamente; consequentemente, o átomo é a menor quantidade de um elemento químico encontrado nas moléculas de diferentes substâncias.” (FONSECA, 2013, p. 108). Pensamos que o termo pode e deve ser conceituado com clareza e objetividade e neste intuito, em nossa apostila, tem- se: “molécula é uma espécie química, eletricamente neutra, formada a partir do estabelecimento de ligação covalente entre dois ou mais átomos.”. Para avaliar a utilização da Apostila como fonte de estudo, foi elaborado o JD QuiTroca- Troca, cuja aplicação no CETA demonstrou que a maior parte dos estudantes da turma conseguiu fazer as associações corretamente, justificando as trocas de cartas realizadas e os ajustes dos equívocos cometidos pelos colegas remetendo ao que estava escrito na Apostila. Com os licenciandos da UNEB, os quais não tiveram acesso prévio à Apostila, notou-se a necessidade de maior intervenção da estagiária durante a socialização das respostas. Isso reforçou o fato de que os estudantes recém-ingressos não tinham clareza de conceitos básicos. No LicQui da UNEB os termos são utilizados nas discussões de conteúdos mais avançados para os quais muitas vezes não há a necessidade de conceituação de termos básicos, assim, a não apropriação destes conceitos (ou em alguns casos definições) perdura por todo o curso, e só quando o estudante se vê na condição de professor (estagiário) percebe a necessidade de ter mais segurança em relação à forma de explicitar oralmente e na escrita destes e de outros conceitos. Esta foi a situação vivenciada pela estagiária e testemunhada pela professora co-autora deste trabalho ao acompanhar diversos licenciandos no decorrer do estágio de regência. Foi nítida, na turma do ES IV 2017.1 e em outras turmas subsequentes deste componente, bem como em outros componentes do curso, onde o QuiTroca-Troca foi aplicado, a perplexidade de boa parte dos estudantes ao serem questionados sobre a adequação de linguagem nos LD de alguns conceitos básicos abordados no jogo.

Conclusões

Da reflexão sobre a análise de livros didáticos e consultas à IUPAC, à ação na elaboração de MD buscando a reestruturação de conceitos fundamentais para o entendimento da Química, a estagiária demonstra a importância da criticidade em relação aos materiais disponibilizados, visando não reproduzir equívocos que possam constituir obstáculos para os estudantes. O desempenho da maioria dos estudantes da turma do CETA, na aplicação do jogo QuiTroca-Troca, atestou que a Apostila elaborada funcionou como uma fonte de estudo eficiente, auxiliando na compreensão dos conceitos básicos. Enquanto que a aplicação do JD para estudantes do LicQui/UNEB, que não tiveram acesso à Apostila, revelou a necessidade de discutir sobre estes conceitos, visto que diversas dúvidas e equívocos foram evidenciados, tanto em recém-ingressos quanto em estudantes mais adiantados. De modo similar ao que aconteceu na turma de ES IV durante as discussões sobre os conteúdos a serem ministrados pelos estagiários. As dificuldades dos recém-ingressos e a perplexidade de grande parte dos outros estudantes do LicQui da UNEB, em relação à adequação de linguagem, corroborou a percepção da estagiária sobre a necessidade de rediscussão, reflexão e reescrita de conceitos básicos. Ficou evidente que estes conceitos, de modo geral, não são devidamente esclarecidos nos LD, são reproduzidos por professores, e estes equívocos acabam por acompanhar o estudante até o momento em que ele se vê na posição de docente. O desenvolvimento da autonomia e proatividade em assumir o papel docente ficaram claros na atuação da estagiária, ao se debruçar no estudo, reflexão e elaboração da Apostila e do JD, materiais didáticos que se diferenciam dos que foram por ela analisados, visando sanar equívocos, ambiguidades e inadequações de linguagem.

Agradecimentos

Aos estudantes – da turma do CETA e do LicQui – que participaram da avaliação dos MDs.

Referências

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