Análise de Conteúdos de Bioquímica em Livros de Química do Programa Nacional do Livro Didático de 2018
ISBN 978-85-85905-23-1
Área
Ensino de Química
Autores
Correia, F.S. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO) ; Moraes, M.C. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO)
Resumo
Neste trabalho, objetivou-se analisar como é abordado e discutido conteúdos relacionados à Bioquímica nos livros didáticos de Química aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático de 2018. Tais conteúdos foram analisados com enfoque nos princípios de Currículo, da Contextualização e da Experimentação. Avaliou-se se estes princípios estão inseridos nas obras, como estão inseridos e se contribuem para a formação acadêmica e cidadã dos educandos. Constatou-se que o estudo de conteúdos bioquímicos é limitado e pouco utilizado para o desenvolvimento de atividades experimentais, do uso da contextualização e da integração de diferentes saberes. Eles não se aproximam da realidade sociocultural do aluno, supondo isto como uma condição para o ensino desmotivador e insignificante da Química.
Palavras chaves
Ensino de Química ; Bioquímica ; Livros Didáticos
Introdução
O grande acesso a diversas informações, característica marcante da sociedade atual, aumenta a responsabilidade da escola em tratá-las corretamente visando uma compreensão correta de seus significados pelos alunos. Para tanto, o professor, responsável pela maior parte deste trabalho, deve propor atividades que contribuam para o desenvolvimento de habilidades dos estudantes durante o processo de ensino e aprendizagem. Neste sentido, no Ensino de Química existem diversos desafios, sendo um deles torná-lo articulado com as necessidades, interesses e realidade dos alunos, afim de os conceitos químicos terem significados no cotidiano deles. No Ensino de Química os educandos apresentam diversas dificuldades no seu aprendizado. Eles não conseguem, de modo geral, compreender o significado ou a importância do que estudam. Isso porque os conteúdos trabalhados estão, na grande maioria das vezes, distantes das suas realidades, de forma descontextualizadas. Logo, tornam-se de difícil compreensão, não despertando o interesse e a motivação dos alunos. Além do mais, os professores estão acostumados, geralmente, a priorizarem a reprodução do conhecimento e a memorização, dissociando a teoria da prática, demonstrando dificuldades de associar o conhecimento científico com situações da vida cotidiana. Neste sentido, o professor, em conjunto com a comunidade escolar, deve construir novas abordagens metodológicas dos conteúdos, afim de ressignificar aquilo que se é estudado, buscando uma produção do conhecimento mais efetiva e a formação de um cidadão crítico, desenvolvendo habilidades para a compreensão, análise e utilização do conhecimento cotidiano, dando condições aos alunos perceberem e interferirem em situações que melhorem a sua qualidade de vida. Portanto, conteúdos ligados à Bioquímica contribuem para um ensino de Química contextualizado e interdisciplinar, tendo em vista a possibilidade de integração de saberes de diversas áreas. A Bioquímica é a ciência que estuda a Química da vida, investigando o componente material de um organismo vivo, identificando a substância ou macromolécula que nele intervém e a forma como interage (GOMES e RANGEL, 2006). É uma disciplina que se caracteriza pela interdisciplinaridade, abordando conceitos químicos e biológicos. Logo, a Bioquímica constitui-se num nicho temático muito rico e promissor para abordagens interdisciplinares, contextualizadas social e experimentalmente (FRANCISCO JR. e FRANCISCO, 2006 apud JUNIOR, 2007). No entanto, poucos professores trabalham com conteúdos bioquímicos porque, na maioria dos casos, possuem dificuldades de desenvolverem atividades ligadas a eles, tal que quando o fazem, utilizam como materiais norteadores de sua pratica pedagógica, o livro didático. O livro didático é o principal instrumento pedagógico utilizados pelos professores nas instituições de ensino públicas brasileiras. Esses materiais são, muitas vezes, os únicos materiais didáticos disponibilizados pela escola e são utilizados, pelos professores, como organizadores (ou norteadores) do currículo da disciplina de Química, ou seja, acabam sendo o próprio currículo da disciplina. Assim, deixam de serem materiais que possam promover a aprendizagem de conhecimentos científicos, a formação do professor e auxílio no desenvolvimento de outras atividades pedagógicas. Neste contexto, objetivou-se neste trabalho analisar os conteúdos relacionados à Bioquímica presentes nos livros didáticos de Química aprovados pelo Programa Nacional do Livros Didáticos (PNLD) – uma política pública criada para incentivar a Educação e melhorar a qualidade do ensino, através da distribuição de livros didáticos para alunos das escolas públicas brasileiras de ensino fundamental e médio. Deste modo, buscou-se com essa análise observar se tais conteúdos são inseridos de forma contextualizada, se existem erros conceituais e a presença de atividades experimentais referentes à tais conteúdos.
Material e métodos
Analisou-se os seis livros de Química aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que foram distribuídos nas escolas públicas brasileiras de ensino médio em 2018. Para tanto, nesta investigação, utilizou-se apenas o volume 3 de cada coletânea, que é destinada a terceira série do ensino médio. Cabe destacar que esta escolha se deu a partir de uma análise preliminar das obras, na qual se constatou que os conteúdos relacionados aos conceitos de Bioquímica estão inseridos somente no referido volume. Os livros escolhidos para esta pesquisa estão descritos no Quadro 1. Para a análise, considerou-se o enfoque em princípios importantes para o efetivo processo de ensino e aprendizagem no ensino de Química: Currículo, Experimentação e Contextualização. O enfoque em currículo foi investigado considerando-se como critério de análise os conceitos relativos à Bioquímica apresentados nos livros didáticos. Assim, observou-se se propõe uma renovação curricular, como esses conceitos estão inseridos nas obras e se são concretos, ou seja, se estão descritos de modo efetivo, livres de erros conceituais. Além disso, se existe textos complementares que contemplem assuntos relativos à esta área de estudos, se tais conteúdos estão homogeneizados em toda a obra ou apenas em parte dela, e se há ligação com a Química. Com isso, analisou-se também se os conteúdos apresentados demonstravam um caráter contemporâneo e interdisciplinar nas obras. Já para avaliar o enfoque na experimentação, analisou-se a presença de práticas experimentais ligadas a Bioquímica e seus objetivos, verificando se elas eram usadas apenas para confirmar uma teoria/conceito e ajudar os alunos a compreenderem o conteúdo, ou se a experimentação tinha um cunho investigativo, inserindo o discente no processo de reconstrução do conhecimento. Em outra perspectiva, observou-se ainda se o experimento era de fácil execução e se exercia uma função de despertar no aluno o pensamento científico. A contextualização, por sua vez, como um aspecto relevante em livros didáticos, foi investigada a fim de se constatar se os conteúdos de Bioquímica presentes nas obras estavam apresentados de maneira social e culturalmente relevante, trazendo o cotidiano do aluno para a sala de aula e sua vivência social. Averiguou-se também se havia a abordagem da Bioquímica por meio de alguns temas sociais, envolvendo questões ambientais, econômicas e sociais, motivando o aluno a aprender e facilitando a sua aprendizagem.
Resultado e discussão
Visando uma melhor leitura, escrita e compreensão dos resultados, nomeou-se
as obras de A a F, conforme apresentadas no Quadro 1.
Análise com enfoque em Currículo:
Todas as obras apresentam conteúdos de Carboidratos, Lipídios e Proteínas,
com exceção do livro C, que não apresenta nada relacionado a Lipídios. No
que se refere à Carboidratos, todas as obras apresentaram uma caracterização
de carboidratos conceitualmente equivocada. Nos livros D, B e E, os
carboidratos são tratados como açúcares. O termo açúcar pode fazer com que
os estudantes relacionem tal termo com doce, uma vez que cotidianamente, os
açúcares são utilizados para adoçar algo.
No livro A, os monossacarídeos são denominados de Oses, enquanto que os
oligossacarídeos e os polissacarídeos são denominados de Osídeos. Segundo a
autora, oses são unidades básicas de carboidratos (livro A página 241). Tal
afirmativa descreve monossacarídeos como moléculas básicas que compõem os
carboidratos, quando na verdade são biomoléculas que fazem parte da classe
de carboidratos.
No livro F, os autores afirmam que “o corpo armazena carboidratos em três
lugares: fígado, músculo (glicogênio) e sangue (glicose)” (livro F, página
53). Em nenhum tópico do livro os autores descrevem o glicogênio como uma
molécula que é produzida pelo organismo a fim de armazenar glicose, sendo
que na verdade, o glicogênio é um polissacarídeo constituído apenas de
glicose. Além disso, relaciona o glicogênio apenas com o músculo, enquanto
que o principal órgão de armazenamento desta molécula é o fígado. Vale
ressaltar que o sangue é o meio pelo qual a glicose é transportada para os
órgãos e não um armazenador dessa molécula. Outra observação foi acerca da
afirmativa “armazena carboidratos”, pois escrita desta forma suscita no
estudante a ideia de que qualquer carboidrato pode ser armazenado.
Ainda no livro F, observou-se que o termo canibalismo presente na seguinte
afirmativa “[...] pois o corpo fará canibalismo muscular, atrofiando os
músculos” (livro F, página 53) pode dificultar a aprendizagem dos alunos,
pois eles podem entender que o músculo está sendo consumido pelo próprio
corpo, enquanto que o correto seria, o corpo está degradando proteínas
presentes nos músculos para gerar energia necessária para o funcionamento do
organismo humano. Desta maneira, o uso de analogias deve ser feito
cuidadosamente para não tornar dificultoso o processo de ensino e
aprendizagem. Além disso, o termo atrofiando é utilizado erroneamente, uma
vez que a atrofia muscular está ligada a perda da função muscular. No caso
descrito pelo livro, o certo seria a perda de massa muscular.
Em relação aos Lipídios, o que se observou é que ainda prevalece a
caracterização de lipídios como sendo apenas óleos e gorduras, pois os
autores descrevem com mais detalhes essas moléculas, citando apenas as
outras pertencentes ao grupo dos lipídios. Afirmações como a presente no
livro B – “é comum também que os lipídios, de forma geral, sejam chamados de
gorduras” (página 108) – reforçam essa ideia, induzindo os alunos a
entenderem lipídios como sendo apenas gorduras.
O conteúdo de proteína foi abordado nas obras A, C, D, E e F, sendo na C
apresentado resumidamente em uma página. O livro B não apresenta o conteúdo
de proteína. Nos livros A, D, E e F, o conteúdo é bastante completo e bem
sistematizado. Apenas o livro A deixou de enumerar e descrever as diversas
funções das proteínas, dando enfoque apenas para o seu papel estrutural no
organismo. Além disso, os livros apresentam quantidades de aminoácidos
essenciais diferentes entre si. Enquanto os livros F e E enumeram 8
aminoácidos essenciais, o livro D descreve 10 aminoácidos como sendo
essenciais. A quantidade exata de aminoácidos essenciais é 10, sendo 2, a
Arginina e a Histidina essências apenas na infância e na doença.
O conceito de metabolismo, importante para o estudo da Bioquímica, é apenas
trabalhado nos livros F e E. Os autores definem metabolismo corretamente e
destacam a sua importância no estudo do papel das biomoléculas no corpo
humano. A compreensão do que é metabolismo e os seus processos contribuem
para a ressignificação dos conteúdos de carboidratos, lipídios e proteínas,
pois possibilitam que os educandos possam entender essas biomoléculas como
constituintes do organismo humano.
Análise com enfoque em Contextualização:
No geral, as obras abordam alguns textos, que estão inseridos nos boxes ou
seções, que descrevem algo do dia a dia dos alunos relacionado com o
conteúdo, enquanto que nos textos dos capítulos ou módulos, os conteúdos são
apenas exemplificados. Observou-se que, geralmente, os conteúdos dos boxes e
das seções são relacionados à cuidados com a saúde e as doenças causadas
pela má alimentação, como a Diabetes, além do desenvolvimento da Hipertensão
e Obesidade.
Nas obras analisadas, o livro B é o único que sugere uma atividade em grupo
através do desenvolvimento de um projeto intitulado Dietas em Debate que
propõem a elaboração de um relatório e um debate sobre a temática de dietas.
A ausência de atividades como está nos outros livros torna difícil para os
estudantes relacionarem a Bioquímica com o seu cotidiano.
Outra característica importante que contribui para a contextualização dos
conteúdos em sala de aula são os aspectos ambientais e econômicos que estão
relacionados à Bioquímica. Todavia, apenas os livros A e E apresentaram
alguns textos que atendem a este aspecto. Em ambas as obras, foram abordados
os malefícios do descarte de óleos e gorduras no meio ambiente, sugerindo a
fabricação de sabão como destino para esses materiais, demonstrando assim
que a Bioquímica também se relaciona com questões socioambientais.
Desta maneira, observou-se que poucos livros problematizam os conteúdos
ligados a Bioquímica. Uma alternativa para os livros didáticos de Química
seria abordar esses conteúdos através de grandes temas que necessitaria dos
conteúdos bioquímicos, os quais estão inseridos conceitos químicos,
desenvolvendo um ensino mais interdisciplinar e contextualizado.
Análise com enfoque em Experimentação:
Das seis obras analisadas, apenas três continham atividades experimentais
ligadas a conteúdos bioquímicos (livro C, D e E), sendo uma em cada obra. No
livro C, o experimento é intitulado Cola de Caseína, que tem como objetivo
separar a caseína presente no leite e fazer uma cola utilizando-a. Esta
atividade não propõe uma investigação do motivo pelo qual a caseína,
misturada a alguns reagentes, descritos no roteiro, produz uma cola. Propõe
apenas a observação da separação da caseína. No livro D, a atividade
consiste na observação da adulteração de mel através da reação do amido com
o iodo, que é indicada com a alteração de cor. Todo o experimento está
descrito anteriormente no capitulo, indicando o que deve ocorrer. Esse tipo
de experimento desestimula os educandos, pois teoricamente já sabem o que
vai ocorrer e vão precisar apenas observar para comprovar o que já foi
estudado. Já a atividade experimental presente no livro E visa a
identificação de insaturações presentes nos triglicerídeos a partir de sua
reação com o iodo. Outra vez, a observação de alteração de cor é o fenômeno
que os educandos deverão observar e justificar um conteúdo já estudado.
Observou-se também que os experimentos encontrados nas obras contribuem para
o comportamento passivo dos educandos no processo de ensino e aprendizagem,
pois não possibilitam que os alunos participem da construção de seu
conhecimento e nem entendam a natureza investigativa da Ciência e suas
relações com a sociedade. Desta maneira, os livros didáticos precisam
apresentar atividades em que os educandos estejam inseridos em todas as
etapas do experimento, identificando e investigando um problema proposto e
assim se posicionar criticamente em relação a questões sociais, culturais,
econômicas e ambientais.
Livros didáticos do Programa Nacional do Livro Didático de 2018 utilizados no estudo.
Conclusões
A Bioquímica, nos livros analisados, não é apresentada como Ciência e que seus objetos de estudos, como as biomoléculas (carboidratos, proteínas e lipídios), são tratadas majoritariamente apenas como compostos químicos que compõem alimentos e estudados de maneira descontextualizada, sem integração de diferentes áreas do conhecimento e com alguns equívocos conceituais. Além disso, os conteúdos bioquímicos poucos são utilizados para a promoção da experimentação, da contextualização e da interdisciplinaridade. Eles são trabalhados distanciados da realidade social, cultural e histórica dos alunos, ocultando as relações e implicações da Química com o mundo contemporâneo e promovendo um ensino insignificante e desmotivador. Neste contexto, faz-se necessário destacar que a Bioquímica possui um campo de conhecimento bastante amplo, que possibilita o estudo de conceitos químicos através de temas relacionados a ela. Com isso, pode ser utilizada no ensino médio pelos professores afim de ressignificar conteúdos, desenvolvendo novas abordagens dos conceitos químicos e bioquímicos e práticas pedagógicas que favoreçam a evolução intelectual, social e cultural dos educandos. Tendo em vista que os docentes, muitas vezes, possuem apenas o livro didático como material que os auxiliam nas suas metodologias, faz-se necessário destacar que é extremamente relevante a avaliação desses livros realizada pelos professores através do PNLD, uma vez que, esses profissionais conhecem a situação social de seus educandos, podendo assim escolher obras que atendam melhor as suas necessidades. A análise da Bioquímica nesses materiais, mesmo que não descrita nas orientações do programa, pode auxiliar os docentes no desenvolvimento de um processo de ensino e aprendizagem mais interdisciplinar, contextualizado, investigativo e não fragmentado, tendo em vista que está Ciência possui múltiplos conteúdos que podem tornar a educação escolar mais significativa.
Agradecimentos
Referências
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