Potencial energético da conversão termoquímica do resíduo de cama de cavalo
ISBN 978-85-85905-21-7
Área
Ambiental
Autores
Manera, C. (UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL) ; Perondi, D. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL) ; Junges, J. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL) ; Godinho, M. (UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL)
Resumo
A cama de cavalo é um resíduo sólido gerado na atividade de criação de cavalos, composto basicamente por excrementos e madeira. Neste trabalho foi avaliada a conversão termoquímica deste resíduo, a partir dos processos de pirólise e gaseificação a vapor do char, para produção de um gás combustível. A pirólise foi conduzida na temperatura de 900 °C por 30 min e o char produzido foi gaseificado a 900 °C por 120 min. Em ambos os ensaios foi observada uma maior taxa de produção de hidrogênio, com uma produção total de 1078 NL/kgresíduo. Os ensaios apresentaram um rendimento energético de 15,22 MJ/kgresíduo. Os resultados obtidos mostram que o resíduo de cama de cavalo possui potencial para produção de gás combustível a partir de processos termoquímicos.
Palavras chaves
cama de cavalo; processos termoquímicos; hidrogênio
Introdução
O crescimento contínuo da população mundial, que poderá atingir cerca de 10 bilhões de pessoas até o final do século XXI, implicará em consequências potencialmente devastadoras para o meio ambiente e para a qualidade de vida da população (AZADI et al., 2013). As mudanças climáticas e a dependência da disponibilidade de petróleo no mundo podem ser combatidas por meio da implementação de tecnologias competitivas e de baixo custo para conversão de resíduos agrícolas em combustíveis (HAMMER et al., 2013). Segundo Tsai et al. (2015), os resíduos agrícolas são constituídos por uma grande quantidade de matéria orgânica lignocelulósica (celulose, hemicelulose e lignina), possuindo um elevado conteúdo energético. O Brasil possui o terceiro maior rebanho de equinos do mundo, com um total de 5.551.238 animais (BRASIL, 2015). Grande parte destes animais passa a maior parte do tempo em um estábulo, onde fazem seus excrementos. Materiais absorventes são colocados no chão do estábulo para absorver a fração líquida destes excrementos e são substituídos periodicamente para manter o ambiente higienizado (LUNDGREN; PETTERSSON, 2009). Diversos materiais de baixo custo são utilizados como substrato para a cama, como cavacos de madeira, serragem, palha e turfa. A escolha do material depende principalmente de sua disponibilidade no local (LUNDGREN; PETTERSSON, 2009). Segundo Böske et al. (2014) um cavalo produz uma quantidade de excremento diária de até 25 kg, composto por 17 kg de fezes e 9 L de urina. Cada cavalo mantido em um estábulo consome entre 8 a 10 kg de substrato para cama por dia. Desta forma, cada animal gera cerca de 12 toneladas anuais de resíduo de cama de cavalo (WARTELL et al., 2012). O principal destino dos resíduos de cama de cavalo é a sua utilização na agricultura como fertilizante. Entretanto, o impacto negativo na qualidade da água e ar causado pelo esterco utilizado como fonte de nutrientes para o solo tem causado preocupações ambientais, principalmente relacionadas ao mau odor e a proliferação de bactérias patogênicas (TSAI et al., 2015). O resíduo de cama de cavalo possui um elevado teor de carbono, sugerindo sua utilização como combustível. Entretanto, a utilização do resíduo bruto como fonte combustível enfrenta uma série de problemas, como o elevado teor de umidade e nitrogênio, baixo poder calorífico, mau cheiro e presença de possíveis patogênicos que dificultam sua utilização direta (CANTRELL et al., 2008). Neste contexto, os processos de conversão termoquímica (pirólise, gaseificação) aparecem como uma alternativa para superar as limitações mencionadas na transformação do resíduo em combustíveis facilmente utilizáveis. A pirólise é a decomposição térmica da matéria orgânica na ausência de oxigênio, que tem como produtos o bio-óleo, carvão (char) e gases não condensáveis (HAMMER et al., 2013). O processo de gaseificação converte a matéria orgânica em energia na forma de um gás combustível, que pode ser utilizado para produção de energia em processos de combustão (motores de combustão interna e turbinas a gás) ou para síntese de compostos orgânicos (SHEN et al., 2016). Os agentes gaseificantes mais utilizados são ar, oxigênio, vapor de água e misturas destes gases. O gás produzido na gaseificação é composto por uma mistura de hidrogênio, monóxido de carbono, dióxido de carbono, metano, hidrocarbonetos leves e vapor de água (ROBSON, 1977). Este trabalho tem por objetivo avaliar a produção de um gás combustível por meio dos processos de pirólise e gaseificação de resíduos de cama de cavalo. O gás foi produzido na decomposição pirolítica do resíduo e na gaseificação com vapor de água do char produzido na pirólise.
Material e métodos
O resíduo de cama de cavalo foi fornecido pela Universidade de Caxias do Sul, sendo este composto basicamente por dejetos equinos e lascas de madeira. A amostra foi utilizada como recebida, sendo apenas seca em estufa a 105 °C antes dos ensaios. O gás combustível foi produzido em duas etapas, pirólise e gaseificação a vapor. A pirólise foi conduzida em um reator tubular horizontal de leito fixo, com diâmetro interno de 43 mm, aquecido por resistências elétricas. Uma descrição detalhada do reator foi realizada por Perondi et al. (2017). No experimento de pirólise, o reator foi alimentado com 60 g de material seco. O reator foi aquecido a 5 °C/min até a temperatura de 900 °C e mantido nesta temperatura por 30 min. O experimento foi conduzido com uma vazão de inerte (N2) de 250 mL/min. A separação dos compostos condensáveis (alcatrão) presentes na corrente de saída do reator foi realizada com uma série de 10 borbulhadores imersos em um banho de gelo. O volume dos gases não condensáveis foi mensurado por um medidor de gases do tipo diafragma. Amostras do gás não condensável foram coletadas ao longo do aquecimento (700, 800 e 900 °C) e na isoterma (15 e 30 min) para análise cromatográfica. A análise foi realizada em um cromatógrafo gasoso, da marca Dani Master GC, provido de um detector por condutividade térmica (TCD) e um detector por ionização de chama (FID). A gaseificação do char produzido na pirólise com vapor de água foi realizada em um reator tubular vertical de leito fixo aquecido por resistências elétricas. O leito reacional possui 85 mm de diâmetro e 1200 mm de altura. A gaseificação foi conduzida com 17 g de char em uma temperatura de 900 °C. A temperatura final foi alcançada com uma taxa de aquecimento de 20 °C/min. O reator foi aquecido com uma vazão de N2 de 1 L/min e depois de atingida a temperatura final de 900 °C o N2 foi substituído por uma vazão de vapor de água de 8,33 g/min. O vapor saturado foi produzido em uma caldeira elétrica (boiler) e foi superaquecido até 150 °C em um pré-aquecedor antes de sua injeção no reator. A água em excesso foi removida com 3 borbulhadores imersos em banho de gelo e a quantificação e caracterização do gás combustível produzido foi realizada de maneira similar ao descrito para a pirólise. A reação de gaseificação foi conduzida por 2 h, tempo em que foi observada uma queda acentuada no volume de gás produzido. Após a gaseificação a vazão de vapor foi substituída por N2 para o resfriamento do reator.
Resultado e discussão
A análise imediata da cama de cavalo apresentou os seguintes valores em
percentuais mássicos (%m/m): 76,1 - matéria volátil, 6,6 - cinzas e 17,3 -
carbono fixo (obtido por diferença). Lundgren e Pettersson (2009), após
várias análises, concluíram que o teor de cinzas da cama de cavalo,
constituída por esterco equino e lascas de madeira, varia tipicamente na
faixa de 5 a 7 %m/m em base seca. Sabe-se que a madeira utilizada como
material da cama apresenta um baixo teor de cinzas, sendo assim, a matéria
inorgânica presente na cama pode ser atribuída ao esterco equino. De acordo
com Nanda et al. (2016), o esterco equino apresenta valores 18,2 %m/m. Em
relação à matéria volátil, Lundgren e Pettersson (2009) observaram valores
em uma faixa típica de 72 a 74 %m/m. Sendo assim, o resíduo estudado neste
trabalho apresenta teores de cinzas e matéria voláteis semelhantes aos
descritos na literatura e seu elevado teor de matéria volátil o torna
apropriado para processos de conversão termoquímica. No experimento de
pirólise foram obtidos os seguintes rendimentos mássicos: 33,1 -
char, 15,2 - óleo e 51,7 - gás não condensável. A Figura 1a apresenta
a taxa de produção média dos gases
(H2/CO/CO2/CH4) em 4 diferentes intervalos
de tempo. O hidrogênio apresentou a taxa de produção mais alta durante todos
os intervalos observados, alcançando o valor de 0,116 mmol/min.g. A elevada
taxa de produção de hidrogênio é atribuída à presença de lignina, um dos
principais componentes da madeira. De acordo com Azadi et al. (2013), a
lignina apresenta maior resistência à decomposição em um processo de
pirólise, quando comparada à decomposição da celulose e hemicelulose, e
ocorre um intervalo maior de temperaturas (150 - 900 °C). Devido a sua
degradabilidade térmica lenta, uma produção contínua de hidrogênio foi
observada, mesmo após a temperatura máxima ser alcançada. A taxa de produção
de monóxido de carbono permaneceu relativamente constante, ao passo que a
produção de metano e dióxido de carbono foi observada apenas na região não
isotérmica. Não foi detectada a presença de hidrocarbonetos leves
(<C5) no gás não condensável produzido. Considerando a energia
contida no gás combustível, a etapa de pirólise apresentou um rendimento de
2,56 MJ/kgresíduo, contemplando uma produção de 159
NLH2/kgresíduo e 26
NLCO/kgresíduo. No experimento de gaseificação, o
char produzido na pirólise foi gaseificado com vapor de água. A
Figura 1b apresenta a taxa de produção média dos gases
(H2/CO/CO2) em diferentes intervalos de tempo ao longo
do ensaio. A taxa de produção de metano foi muito baixa e não está
apresentada na figura. Hidrocarbonetos leves (<C5) não foram
observados no experimento de gaseificação. A região transiente observada no
início do experimento, até cerca de 3 minutos, pode ser atribuída ao
distúrbio provocado pela substituição do gás inerte (N2) por
vapor de água no leito reacional. Após 3 min de experimento, a taxa de
produção dos gases permaneceu aproximadamente estável até 25 min, com uma
taxa de produção de hidrogênio de até 1,3 mmol/min.g. O comportamento
observado para as taxas de produção dos gases é explicado por duas reações,
a reação de gaseificação do carbono do sólido com vapor de água e a reação
de deslocamento gás-água (WGS – water-gas shift). A reação de
gaseificação com vapor de água, que tem como produtos o hidrogênio e o
monóxido de carbono, é a principal reação envolvida no processo e é
responsável pela produção da maior parcela de hidrogênio. A produção
contínua de dióxido de carbono demonstra a influência da reação de WGS, onde
o monóxido de carbono reage com o vapor de água para produzir hidrogênio e
dióxido de carbono. Observa-se ainda que ao longo do tempo há um aumento na
taxa de produção de dióxido de carbono acompanhada por uma diminuição na
taxa de produção de monóxido de carbono. Devido ao aumento da concentração
de vapor de água no interior do reator, a reação de WGS é deslocada,
causando um aumento no consumo do monóxido de carbono e na taxa de produção
de dióxido de carbono e hidrogênio, alterando consequentemente as taxas de
produção observadas no experimento. Desta forma, a maior taxa de produção de
hidrogênio é atribuída ao efeito combinado das duas reações discutidas. Após
os 25 min de experimento foi observada uma queda contínua na taxa de
produção dos gases, devido à diminuição da quantidade de carbono presente no
sólido com o aumento da extensão da reação. O experimento foi interrompido
aos 120 min, com uma taxa de produção de gases de 0,03 mmol/min.g. O
experimento de gaseificação apresentou uma conversão final de 99,7 % e um
rendimento energético de 12,66 MJ/kgresíduo. O poder calorífico
superior do gás produzido no ensaio foi de 9,95 MJ/Nm³ e foram observadas
produções de 919 NLH2/kgresíduo e 74
NLCO/kgresíduo. A Figura 2 apresenta o volume de gás
produzido ao longo dos experimentos de pirólise e gaseificação. Observa-se
que a maior parcela dos gases é produzida na etapa de gaseificação do
char, entretanto uma parcela considerável de hidrogênio é produzida
na pirólise. Destaca-se uma produção total de 64,7 NL de hidrogênio e um
rendimento energético total de 15,22 MJ/kgresíduo.
Taxa de produção média dos gases na pirólise (a) e na gaseificação (b) da cama de cavalo
Volume total dos gases produzidos na gaseificação e pirólise da cama de cavalo
Conclusões
O resíduo de cama de cavalo apresenta elevado teor de matéria volátil (71,6 %) sugerindo sua aplicação em processos termoquímicos para produção de combustíveis. Os resultados da pirólise mostraram um elevado rendimento de gás não condensável e baixo rendimento de bio-óleo. O hidrogênio apresentou a maior taxa de formação (0,116 mmol/min.g), sendo observada sua produção ao longo de todo experimento. Dióxido de carbono e metano foram produzidos apenas na região não isotérmica. O gás combustível produzido na gaseificação com vapor de água do char de cama de cavalo apresentou um poder calorífico superior médio de 9,95 MJ/Nm³. Os resultados mostraram uma elevada taxa de produção de hidrogênio, seguida por dióxido de carbono e monóxido de carbono. Hidrocarbonetos leves e metano não apresentaram uma produção significativa na gaseificação. Uma conversão de 99,7 % foi alcançada após 120 min de reação. O processo apresentou um rendimento energético de 12,66 MJ/kgresíduo. Finalmente, os resultados apresentados mostram que os processos de pirólise e gaseificação de cama de cavalo representam uma alternativa promissora para a disposição adequada deste resíduo e para produção de um gás combustível.
Agradecimentos
Os autores agradecem o Laboratório de Energia e Bioprocessos da Universidade de Caxias do Sul e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
Referências
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