Etnoconhecimento e Educação Química: diálogos possíveis no processo de formação inicial de professores na Amazônia

ISBN 978-85-85905-19-4

Área

Ensino de Química

Autores

Assis Júnior, P.C. (UEA) ; Souza, C.B. (UEA) ; Eleutério, C.M.S. (UEA) ; Souza, R.H. (UFAM)

Resumo

Este estudo mostra as possibilidades de diálogo entre o Etnoconhecimento e a Educação Química no processo de formação inicial de professores na Amazônia. Foram mapeados 90 Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) de egressos do Curso de Licenciatura em Química entre 2010 a 2015. Desses trabalhos 9 tem relação com o Etnoconhecimento. O estudo encontrou amparo na LDB – 9394/96, nas Diretrizes Curriculares Nacionais (2001,2002) que orientam e regulamentam o sistema educacional brasileiro. A fundamentação teórica foi construída a partir de artigos, livros, periódicos e outros materiais pertinentes ao tema. O processo de investigação se sustentou na análise documental e os dados foram tratados à luz da análise de conteúdo. Os dados parciais foram organizados e apresentados à comunidade acadêmica.

Palavras chaves

Etnoconhecimento; Educação Química; Formação Inicial

Introdução

No Brasil, a formação de professores de Química e de outras áreas do conhecimento encontra amparo no Art. 62 da Lei de Diretrizes Bases – 9394/96. De acordo com essa Lei, o professor para atuar na educação básica deverá formar-se em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em Universidades e/ou Institutos Superiores de Educação. Em relação à formação do professor de química, esta deve proporcionar uma visão geral, sólida e abrangente em conteúdos de diversos campos da química e áreas afins. Deve também preparar adequadamente o professor para que este possa contextualizar e aplicar pedagogicamente os conteúdos no seu contexto laboral (BRASIL, 2001). A formação inicial do professor tanto da educação básica quanto do ensino superior tem se tornado ponto de discussões na academia, em congressos, simpósios e encontros pedagógicos. É percebível a associação da qualidade do ensino à formação do professor, à prática docente e aos currículos que ainda em pleno século XXI extravasam conteúdos informativos, algumas vezes desatualizados e incapazes de suscitar mudanças ou possibilitar o desenvolvimento de ações interativas tanto na escola quanto sociedade. As Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Química (2001) apontam para a necessidade de se criar um novo modelo de curso e de currículo, que propicie uma formação profissional capaz de transformar a aprendizagem em processo contínuo, de maneira a incorporar, reestruturar e criar novos conhecimentos. É preciso que professores e estudantes ultrapassem os limites do "já dito", do "já conhecido" e reconheçam a química não como a “ciência dos danos”, mas como a ciência das possibilidades: de construção humana; de compreensão da sociedade (as pessoas, o outro, uma construção de todos); dos aspectos histórico- culturais, econômico-político que contribuíram para sua constituição como ciência, para a compreensão de conceitos científicos que nos faz olhar com outras lentes a Educação Química no Brasil. A Educação Química aos longos dos anos vem se constituindo uma área de pesquisa que trata das concepções epistemológicas, da formação inicial e continuada do professor, da pesquisa e do ensino, das práticas pedagógicas, das metodologias e as estratégias didáticas e outras abordagens. De acordo com Schnetzler (2002) a constituição desta área está atrelada à primeira Reunião Anual e aos Encontros Nacionais e Regionais de Ensino de Química realizados a partir de 1978, coordenados pela Sociedade Brasileira de Química – SBQ. Atualmente destacam-se dois grandes eventos: o Encontro Nacional de Ensino de Química – ENEQ e o Simpósio Brasileiro de Educação Química – SIMPEQUI, que congregam professores e acadêmicos das licenciaturas em Química, professores e estudantes da Educação Básica. Esses eventos vêm possibilitando a socialização das experiências e pesquisas que tratam de temas relacionados com os eixos: formação do professor; ensino e aprendizagem em química; materiais didáticos; cognição e códigos linguísticos; experimentação no ensino, história, filosofia e sociologia da ciência; educação em espaços não-formais e divulgação científica; tecnologias da informação e comunicação – TIC; abordagem ciência, tecnologia, sociedade e ambiente – CTSA; currículo e avaliação; inclusão e políticas educacionais (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – PIBID). Analisando os trabalhos publicados no ENEQ e SIMPEQUI constatou-se que existem poucas pesquisas que envolvem o etnoconhecimento e a sua relação com conceitos básicos da química. Paulo Freire há mais de quatro décadas desenvolveu um trabalhado na Educação de Jovens e Adultos – EJA onde tomava como centro de sua pedagogia os saberes populares. Inicia-se então o processo de construção de uma pedagogia antropológica ou uma etnopedagogia. Se tomarmos como referência a experiência de Paulo Freire, certamente os conteúdos da química ensinados na academia e na escola, antes eram caracterizados como teóricos e abstratos, na concepção de Simon et al. (2014), transformam-se em constructos culturais passíveis de recriação. Esse modelo vem romper com a didática clássica, que se apoia em métodos universais que advogam: “ensinar tudo a todos”, dissociado de “para que ensinar”. Considerando a realização do I ENEQ em 1982 e do I SIMPEQUI em 2003, podemos afirmar que as pesquisas desenvolvidas na área de Educação e Ensino de Química, na perspectiva freireana, ainda são embrionárias. Mesmo assim, já se percebe professores preocupados em encontrar alternativas que possibilitem a integração entre diferentes culturas e saberes; que compreendem a importância de considerar os conhecimentos advindos da realidade dos estudantes; que refletem sobre os currículos que sustentam a formação de professores e sua organização. Diante do exposto, este trabalho admite as possibilidades de diálogo entre o Etnoconhecimento e a Educação Química no processo de formação inicial de professores na Amazônia.

Material e métodos

Este estudo mapeou 90 Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC), identificou os tipos de abordagens e verificou como se procedeu o diálogo entre os conteúdos da Química e o Etnoconhecimento nos TCC de egressos do Curso de Química do Centro de Estudos Superiores de Parintins – CESP/UEA. Trata-se de um estudo qualitativo que na concepção de Minayo (2010) direciona o olhar para o mundo dos significados das ações e relações dos sujeitos, na compreensão e interpretação da realidade. A abordagem qualitativa trabalha com o universo dos significados, das causas, das pretensões, das crenças, dos valores e das atitudes. Esse conjunto de fatores é entendido como parte da realidade social, pois o ser humano se distingue não somente pelo modo de agir, mas por refletir sobre o que faz e por interpretar suas ações dentro e a partir da realidade vivida e partilhada com os outros. O processo de investigação (mapeamento dos TCC, identificação das temáticas, do tipo de abordagem e a verificação dos diálogos entre o Etnoconhecimento e os conteúdos da Química) se apoia na “pesquisa análise documental” que segundo Moreira (2005), é uma técnica que aprecia os documentos com uma finalidade específica, visa extrair um reflexo objetivo da fonte original, permite a localização, identificação, organização e avaliação das informações contidas no documento, além da contextualização dos fatos em determinados momentos. Os resultados parciais foram tratados à luz da técnica “análise de conteúdo” que segundo Bardin (2007 apud Oliveira (2008), é composta de procedimentos sistemáticos que proporcionam o levantamento de indicadores quantitativos ou não, permitindo a realização de inferência de conhecimentos. Para Oliveira (2008) essa técnica permite o acesso a conteúdos múltiplos, explícitos ou não, presentes em um texto, sejam eles expressos na axiologia subjacente ao texto analisado; implicação do contexto político nos discursos; exploração da moralidade de dada época; análise das representações sociais sobre determinado objeto; inconsciente coletivo de determinado tema; repertório semântico ou sintático de determinado grupo social ou profissional; análise da comunicação cotidiana seja ela verbal ou escrita, entre outros. Para melhor compreensão do leitor os resultados das práticas tradicionais (reações química) depois de analisados e contextualizados foram descritas passo a passo com a intenção de estabelecer a relação entre o Etnoconhecimento (processo de produção de derivados da mandioca) e a Química.

Resultado e discussão

Durante o processo de investigação foi possível mapear 90 Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC), identificar várias temáticas com abordagens diferentes: CTS, Temática, Educação Ambiental, Experimentação, Ludicidade, Formação de Professores e Etnoconhecimento, foco desta investigação. Dentre os 90 TCC mapeados, 9 tinham relação com o Etnoconhecimento, mas apenas 6 tecem diálogos com a Química: o processo de produção de farinha de mandioca (Manihot esculenta Crantz); a extração artesanal de óleo de andiroba (Carapa guianensis Aubl), cumaru (Dipteryx odorata) e copaíba (Copaifera langsdorffii); a extração de pigmentos de urucum (Bixa orellana L.) e cumatê (Myrcia atramentifera). No processo de fabricação de farinha de mandioca foram evidenciados os conteúdos: separação de misturas – peneiração, filtração e decantação (Figura 1). Foi possível falar dos carboidratos e da toxidade da mandioca. De acordo com Almeida e Ferreira-Filho (2005) o teor de ácido cianídrico por quilo de raiz fresca é superior a 100mg. Para Eleutério (2015) a causa de muitos envenenamentos se dá pela ingestão da raiz de mandioca in natura. A raiz da mandioca possui um látex, de um glicosídeo cianogênico (linamarina) que, em contato com ácidos e enzimas (limarase) dos sulcos digestivos, se hidrolisa formando o ácido cianídrico (Figura 2). Quando a massa da mandioca é prensada, o tucupi (manipueira) é liberado e o amido (homopolissacarídeo) decantado. Como os tubérculos possuem teores mínimos de proteínas, lipídios e outros componentes, o amido é facilmente extraído. Os trabalhos que tratavam da extração artesanal de óleo de andiroba, cumaru e copaíba demonstraram que esses óleos vêm sendo utilizados há muitos anos em diversas aplicações. No óleo de andiroba, por exemplo, estão presentes substâncias ativas como limonóides e triterpenos. Possuem ainda ácidos graxos saturados: mirístico, palmítico e esteárico e insaturados: oléico, linoléico e linolênico (FARIAS e MELO FILHO, 2013). No óleo de cumaru de acordo com Araújo, Echeverria e Pastore-Jr. (2004) existem os ácidos palmítico, esteárico, oleico, linoleico, linolênico, araquídico, beênico e lignocérico. Estes dados serviram para articular o conhecimento químico tomando os ácidos carboxílicos e ésteres como referência. Foram apresentadas as estruturas dos ácidos encontrados nos processos de extração com solventes orgânicos; evidenciadas os tipos de ligações; reação de esterificação e os métodos de obtenção dos ácidos carboxílicos. No óleo de copaíba estão presentes ácidos diterpênicos e sesquiterpenos. Os ácidos diterpênicos são: hardwíckico, colavenol, copaiférico ou copaífero, copaiferólico, calavênico, patagônico, copálico entre outros. Os sesquiterpenos podem ser classificados sesquiterpenos oxigenados (álcoois) e hidrocarbonetos sesquiterpênicos (Cascon & Gilbert, 2000) que, segundo Maciel et al. (2002), possuem maior atividade antiinflamatória quando comparados aos outros dois grupos presentes. O óleo de copaíba segundo Pieri, Mussi e Moreira (2009) há anos vem sendo objeto de estudo, visando comprovação científica para substituir o eugenol no ramo da odontologia. Para que os diálogos entre os conteúdos disciplinares da química e o conhecimento tradicional acontecessem foram realizadas oficinas de extração de óleos. Durante as atividades foi percebido que as extrações envolviam técnicas de separação de misturas; métodos de identificação do índice de acidez e saponificação; de peróxidos e ácidos graxos livres; determinação da densidade e outras análises. Outros conteúdos abordados tinham relação com química orgânica: os diterpenóides que possuem 20 átomos de carbono estão presentes nesses óleos. As reações que aconteceram durante o processo de extração foram explicadas a partir das reações poliméricas responsáveis pela liberação dos princípios ativos dessas espécies. Enfim, as diferentes etapas de extração foram constituídas por uma espécie de rito, magia e muita crença, característica peculiar dos povos da Amazônia. A investigação sobre “Corantes e indicadores naturais de origem amazônica” proporcionou a realização de oficinas de extração de pigmentos de urucum (Bixa orellana L.) e cumatê (Myrcia atramentifera). As oficinas iniciaram-se com a coleta do material (cascas, folhas e ouriços) das espécies em estudo. As atividades experimentais com urucum foram realizadas após uma breve investigação a respeito da produção do colorau e do extrato de urucum utilizados nos aldeados indígenas e nas comunidades tradicionais da Amazônia. Para preparar as soluções de urucum pelo método tradicional, foi utilizado 100g de sementes; 250mL de azeite extra virgem. Em um recipiente devidamente higienizado e com tampa, foram colocadas as sementes de urucum e o azeite. Foi necessário homogeneizar a solução duas vezes por dia para o desprendimento do pigmento. Depois que a solução ficou bem colorida, as sementes foram retiradas e a solução estava pronta para ser aproveitada na alimentação diária. Para preparar o colorau, as sementes de urucum foram pesadas e levadas ao sol para secá-las. Após esse procedimento foram usadas 3 colheres de óleo vegetal, 250g de sementes e 500g de fubá de milho. As sementes secas foram douradas em óleo por alguns minutos. Os ingredientes foram misturados e socados em um pilão. Depois o material foi peneirado em um crivo de malha fina. O colorau depois de pronto foi acondicionado em saquinhos plásticos de 100g. Com este trabalho foi possível contextualizar em sala de aula, conteúdos relacionados ao eixo temático “Estudo das Soluções, Funções Orgânicas”. A avaliação do processo de extração do corante de urucum demonstrou que o óleo extrai um corante vermelho intenso. Foi identificado na estrutura da Bixa orellana L dois grupos funcionais: o ácido carboxílico e éster. Estes exemplos confirmam a possibilidade de se trabalhar na educação básica conteúdos químicos a partir de atividades desenvolvidas nos aldeados indígenas e nas comunidades tradicionais. O aluno parece se sentir mais motivado a aprender química quando os conteúdos têm relação com o seu cotidiano (ELEUTÉRIO, 2015). O estudo que envolveu a espécie Myrcia atramentifera foi um dos primeiros trabalhos a ser realizado nesta linha de abordagem. Ele parte de uma investigação sobre as tinturas das cuias de tacacá. A substância natural que dá a coloração negra às cuias é o cumatê, pigmento do cumatezeiro. O extrato geralmente é produzido tomando as cascas da árvore que são açoitadas com pedaços de madeira roliços e sólidos e depois são mergulhadas em baldes com água por quatro dias para depreender o pigmento tânico. Em algumas comunidades tradicionais as cascas são fervidas e deixadas em repouso por vários dias. O líquido é filtrado em tecidos finos para separar fragmentos de madeira e em seguida armazenado para ser utilizado nos processos de tingimento. As cuias foram pinceladas com penas de galinha até apresentarem a cor negra e colocadas emborcadas em um jirau para secar. As cuias depois tingidas ficaram expostas a vapores de amônia (a amônia substituiu a urina choca) substância responsável pela fixação da cor. Após esse processo as cuias foram lavadas, secas e prontas para o uso. Com esse estudo foi possível se obter informações sobre as propriedades do extrato de cumatê e outras preparações, usos e experiências práticas de manufatura, com uso de corantes e indicadores extraídos de fontes vegetais da Região Amazônica. Com este tipo de metodologia é possível desenvolve atividades que ampliam o conhecimento dos alunos em relação aos métodos de extração, dos conceitos de solubilidade e do caráter ácido/base dos corantes. Por fim, os TCC mostraram uma rica possibilidade de se desenvolver ações didático-metodológicas que permitam momentos de estudos e reflexão voltados para a condição de aprender, criar estratégias e caminhos para estimular o querer ser professor de química no contexto amazônico.

Figura 1: Processos de separação de misturas.



Figura 2: Reação de oxidação



Conclusões

Este estudo mostrou que um pequeno grupo de professores se preocupa em dar sentido ao que ensina quando tenta incorporar o etnoconhecimento à prática docente. E isso nos ajuda a refletir sobre o que se ensina na escola, para que e para quem se ensina. Existem diferentes abordagens que podem ajudar o professor a ensinar melhor os conteúdos disciplinares e, sobretudo, dar significado ao que ensina. A escola é o lugar onde existem pessoas de diferentes culturas, com significados, valores e credos. As culturas dessas pessoas dificilmente estão presentes nos currículos das escolas e não são validadas nem concebidas como conhecimento pelos professores. Os autores dos TCC asseguram que o Etnoconhecimento como abordagem pedagógica coloca o professor e o aluno em contato com sua cultura, incorpora novos conhecimentos e valoriza os saberes constituídos ao longo dos tempos. Se a escola adotar a cultura de sua gente, as salas de aulas se tornam ambientes favoráveis à aprendizagem e os alunos estarão preparados a cruzar outras fronteiras.

Agradecimentos

Universidade do Estado do Amazonas – UEA Universidade Federal do Amazonas – UFAM Coordenação do Curso de Química – CESP/UEA

Referências

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