CONGOS, OURO, NÍQUEL E A DIÁSPORA AFRICANA EM GOIÁS: A LEI 10.639/03 NO ENSINO DE QUÍMICA.

ISBN 978-85-85905-15-6

Área

Ensino de Química

Autores

Silva, J.P. (LPEQI-UFG) ; Faustino, G.A.A. (LPEQI-UFG) ; Alvino, A.C.B. (LPEQI-UFG) ; Benite, A.M.C. (LPEQI-UFG)

Resumo

Neste trabalho apresentamos estudos de planejamento design e desenvolvimento de uma intervenção pedagógica (IP) em aula de química em ensino superior. O contexto da IP foi a extração de níquel no município de Niquelândia por meio de reação de complexação. Os conceitos químicos envolvidos foram o de constante de formação de complexos e efeito quelato. Nossos resultados demonstram que a IP pode ser uma alternativa para a implementação da lei 10.639/03 no ensino de química.

Palavras chaves

lei 10639; constante de formação; complexos

Introdução

A lei 10639/03 (Brasil, 2003) obriga que se ensine a história da cultura afrobrasileira e africana em todo o currículo escolar. Por sua vez as Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais se referem as ciências da natureza: A biologia, a matemática, a física e a química destacam-se como disciplinas que, integradas, são capazes de desconstruir conhecimentos que afirmam as diferenças como inferioridade e que marcam a condição natural de indivíduos e grupos inter- étnicos. O trabalho por projetos pode incluir diferentes disciplinas: física, química, matemática, e mesmo história, sociologia, filosofia, (BRASIL, 2006 p.196). Com a proposta de descolonizar as ciências por meio da implementação da lei 10639/03 no ensino de ciências/química, em 2008 o Laboratório de Pesquisa em Educação Química e Inclusão (LPEQI) do Instituto de Química da Universidade Federal de Goiás (IQ/UFG), realiza estudos nos cursos de graduação em ciências tecnológicas nas Universidades Públicas de Goiás e diagnostica que a temática étnico-racial não é abordada nestes. A partir desses resultados e com o intuito de corroborar com a investigação nessa temática, surge em 2009 o Coletivo Negro (a) (CIATA/UFG), que realiza pesquisas sobre as relações étnico-raciais na formação de professores de química, do qual os autores são atores. Seus participantes reconhecem que esta não é tarefa fácil e para tal será “preciso entender e considerar a importância da articulação entre cultura, identidade negra e educação. Uma articulação que se dá nos processos educativos e não-escolares” (GOMES, p. 169). Alguns dos resultados desses estudos iniciados em 2008 estão em: (Arantes e Benite, 2011); (Souza et al, 2011); (Santos et al, 2012) e (Benite et al, 2012),[P. da Silva et al, 2013 (a)] e [P. da Silva et al, 2013 (b)]. O CIATA advoga que uma das primeiras alternativas nessa direção deve ser a inserção, nos cursos de formação de professores de química e nas disciplinas de química oferecida aos outros cursos de graduação de debates e discussões que privilegiem a relação entre a cultura e a educação. Para isso investimos no ensino de química a partir da ciência e cultura de matriz africana. De uma perspectiva dialética, apoiamos em Johnson (2010), para afirmar que os estudos baseados na cultura justificam-se por três premissas: “1ª) Os processos culturais estão intimamente vinculados com as relações sociais, especialmente com as relações e formações de classe; 2ª) a cultura envolve poder, contribuindo para produzir assimetrias nas capacidades dos indivíduos e dos grupos sociais para definir e satisfazer suas necessidades e a 3ª que se deduz das outras duas, é que a cultura não é um campo autônomo nem externamente determinado, mas um local de diferenças e lutas sociais” (p. 12-13). A história das lutas e cultura dos povos que para cá vieram para serem escravizados e de seus descendentes, as tecnologias trazidas por estes como os conhecimentos na agricultura, na forja do ferro, na lida com as plantas são elementos que de forma transdisciplinar podem-se trabalhar conceitos de química nos ensinos superior, médio e básico em interface com a lei 10.639/03. Neste trabalho apresentamos os resultados de planejamento, design e desenvolvimento de uma intervenção pedagógica em aula de química que abordou o contexto da extração de níquel em Niquelândia que é realizada por meio de reações de complexação. Nesta IP discutimos os conceitos de constante de formação e efeito quelato através da diáspora africana e sua exploração no Ciclo do Ouro em Goiás.

Material e métodos

Este trabalho se caracteriza como uma pesquisa participante com um enfoque de investigação social por meio da qual se busca a participação da comunidade na análise de sua própria realidade, com o objetivo de promover ações coletivas para o beneficio da comunidade escolar. Trata-se, portanto, de uma atividade educativa de investigação e ação social (BRANDÃO 1984). Cabe esclarecer que a participação em uma pesquisa segundo Demo (2004) está para além de pertencer a essa comunidade, mas dar voz a mesma. Neste caso assumimos as duas posições, pois representamos os professores de ciências que ensinam para a sociedade brasileira que é multicultural e multirracial e também os membros desta sociedade, isto é, representa-se a sala de aula de ciências condicionada pela heterogeneidade de sua constituição identitária a partir de posições definidas e legitimadas nesta estrutura social. Ainda, conforme Demo (2004), a pesquisa participante alia simultaneamente o conhecimento e a participação, buscando dar autonomia e capacidade de emancipação cidadã aos envolvidos no processo, especificamente no trato com o situar-se dentro de uma sociedade composta por diferentes etnias. Foram sujeitos dessa investigação (SI): uma professora formadora (PF), um aluno de doutorado (AD) um aluno de mestrado (AM) e um aluno de iniciação científica (IC), esses quatro membro do CIATA e 14 alunos de uma disciplina de Núcleo Livre, (A1 a A14) de uma Instituição de Ensino Superior Pública do estado de Goiás. A disciplina cujo título é Ensino de Química, Identidade e Cultura Africana, possui a seguinte ementa: A arqueologia da África e suas técnicas. Processos de datação. Elementos da diáspora africana no Brasil e o ensino de química: A química do ferro e o papel do ferreiro africano nas sociedades centro-africanas e no Brasil colônia; A química do dendê e a sua importância nas religiões de matriz africana e na culinária afrobrasileira. Abordagem etnobotânica acerca de plantas utilizadas nas religiões de matriz africana. Produção de diamantes e metais nobres em alguns países do continente africano e suas implicações nas guerras civis em África. A IP versou sobre “Cultura, Tradição, Religiosidade, Garimpo de Ouro Extração do Níquel” se deu em quatro momentos: 1) a origem do Negro Africano que veio para Goiás, 2) a chegadas dos bandeirantes em Goiás e a descoberta de ouro, a manutenção da cultura, tradição e religiosidade dos negros brasileiros na cidade de Niquelândia e 4) a extração do níquel nessa cidade e as reações de complexação desse metal. A intervenção foi gravada em áudio e vídeo perfazendo 2 horas e 17 min de gravação, transcrita, e os dados obtidos agrupados por unidades de significado, e analisados segundo a técnica da Análise da Conversação, (AC). Para Marcuschi 2003, p. 7, a AC procede pela indução e inexistem modelos a priori, possui uma vocação naturalística com poucas análises quantitativas, prevalecendo às descrições e interpretações.

Resultado e discussão

Passamos a apresentar o extrato 1: EXTRATO 1: SOBRE A MINERAÇÃO DO OURO E O SURGIMENTO DO ATUAL ESTADO DE GOIÁS. T.33 A1: Na realidade essa contribuição dos paulistas ela se dá para o estado de Goiás através de Bartolomeu da Silva (pai) que vem aqui no século XVI e mais tarde retorna o filho dele Bartolomeu (filho) que funda na realidade seus arraiais que eram as pequenas províncias de antigamente pertencente e tem a cidade de Sant’Ana que hoje e a Cidade de Goiás tem as minas são determinadas por essa entrada dentro do estado de Goiás que e ... Goiás tem a de, T.34: Pirenopólis T.57 A1: A exploração do ouro para a época geralmente era no jeito aluvião, o ouro que é extraído da superfície. Tinha uma grande parte das cidades que eram desenvolvidas próximo aos rios. Os resultados expressos nos turnos 33, 34 e 57 mostram a discussão sobre a formação da Capitania de Goiás no século XVIII, o papel dos descendentes portugueses na formação das novas vilas e cidades e como era realizado o processo de extração de ouro. As primeiras expedições bandeirantes a chegarem no atual estado de Goiás, datam do final do século XVI. No entanto: só foi com a mineração aurífera que se inicia o processo de ocupação definitivo. A região do Rio Vermelho foi a primeira, onde fundaram, em 1727 o arraial de Sant’Ànna. Anos mais tarde se transformaria na Cidade de Goiás, que foi capital por 200 anos até a construção de Goiânia, (PALACIN; MORAES, 1994, p.9-10) Para trabalhar nessas minas de ouro foram traficados africanos cuja historiografia se limita a dizer que estes entraram através dos portos de Belém, Salvador, Recife, Natal, Parnaíba e São Luiz. E desses portos eles chegaram até Goiás ou via terrestre, fazendo longas caminhadas ou através do Rio Tocantins, (KARASCH, (2012). Ainda segundo KARASCH, (2012): Os africanos foram importados para trabalhar nas minas de ouro da capitania por quase um século. O ouro foi descoberto nos anos de 1720, no rio Vermelho, e logo depois os portugueses fundaram a Vila Boa de Goiás, que mais tarde transformaram na capital da capitania de Goiás (p. 129). Em T. 57, A1 se refere ao processo de extração do ouro. “A exploração do ouro para a época geralmente era no jeito aluvião, o ouro que é extraído da superfície”. Sobre esse processo de exploração e a mão de obra empregada KARASCH, (2012) diz: No rio Maranhão (outro nome para o curso superior do rio Tocantins), 12 mil escravizados trabalhou em um enorme projeto para desviar o leito do rio e assim obter acesso a seu ouro aluvial. [...] em todos os lugares, a maior parte do processo de mineração se valia de tecnologia simples, isto é, a bateia (uma tigela simples de madeira para lavar ouro) e ferramentas para cavar ou remover os sedimentos dos leitos dos rios, (p.129). Em 1792 habitavam na capitania de Goiás 37.309 escravizados e destes aproximadamente 14% moravam no arraial de Traíras, local hoje onde se localiza o município de Niquelândia. Nossos resultados mostram que a ação mediada no ensino de química pode utilizar contexto particular sobre a fundação da Capitania de Goiás, atuais estados de Goiás e Tocantins, o papel do bandeirante paulista na fundação das primeiras vilas, o emprego da mão de obra africana escravizada no garimpo de ouro e a religiosidade mantida pelos povos que fundaram o Arraial de Traíras atual cidade de Niquelândia. Ou seja, os processos de mediação consideraram as especificidades do sujeito em sala de aula e ainda seus fatores de constituição de identidade. O extrato 2 mostra as discussões a respeito da herança na tradição e religiosidade deixada pelo africanos e seus descendentes para aquele município. EXTRATO 2: SOBRE A TRADIÇÃO E RELIGIOSIDADE EM NIQUELÂNDIA GO. T.83 A5: Aqui mais é sobre uma mudança de cidade, foi fundado o Arraial de Traíras... T.90 A12: E fala também que conserva uma cultura e uma cultura religiosa muito tradicional, que vem em grande parte dos povos africanos. T.91 AD: A cultura que é bem sincrética, sofrendo influências dos Jesuítas do Africano e do Índio que lá morava. T. 108 A3: Ele fala também em particular porque lá tem vários grupos religiosos, por exemplo, a Festa da Capina. Quem participa é só uma parte da população que é devoto a essa festa. T. 110 A3: E quando faz a festa do Congo que já é outra parte da população. A população parte afro descendente e eles vão e fazem a dança, a comida e eles tentam difundir essa parte da religiosidade na cidade. T. 125 A15: Na festa dos Congos, os negros reuniam na Igreja de Santa Ifigênia. Eles realizam a dança do congo. Tem os denominado princesa, juiz, príncipe para representar cada um. Eles usam trajes coloridos e é isso. T. 127 A3: Usam penacho na cabeça. T. 129 A4: Remete a cultura indígena. Nos resultados apresentados pelos turnos (T. 83, 90, 91 e 108) se remetem a religiosidade que era e ainda é praticada na cidade de Niquelândia. Em T. 108 A3 afirma que as festas religiosas nessa cidade eram separadas por determinados grupos. Sobre as diferentes confrarias religiosas de contribuição africana MUNANGA (2009) afirma que “eram separadas para os escravizados africanos e para brancos e, entre os escravizados, havia confrarias especiais para grupos determinados” (p.94). Dentre as festas religiosas de origem africana, realizadas na cidade de Niquelândia, assim como em outras cidades de Goiás e do Brasil tem-se a Festa do Congo a que se referem os discursos escritos produzidos nos turnos 110, 125, 127, 129. Sobre essa festa MARTINEZ (2011) descreve: No primeiro dia da festa (de origem africana) os congos reúnem-se na Igreja Santa Ifigênia onde é celebrada uma missa às 9:00 h, após a qual começa a dança do congo, onde Imperatriz, Príncipes e Princesas e Juiz e Juíza, já que seus integrantes se vestem com roupas coloridas usadas pelos seus antepassados, usam também uns penachos na cabeça (influência dos índios da região), os que os distinguem dos demais congos de Goiás (p. 9-10).A tradição da festa do Congo trazida pelos garimpeiros africanos de ouro ainda se mantém em Niquelândia e em algumas cidades de Goiás. Porém o ouro na forma aluvião há muito tempo deixou de ser extraído. Esse metal hoje é obtido através de reação de lixiviação e complexação com o cianeto. Processo idêntico é utilizado para transformar (NiO) em (NiCO3) em uma das mineradoras da cidade de Niquelândia, para posterior processamento de eletrolise, desse metal, no estado de São Paulo. Os agentes complexantes utilizados são o CO2 e NH3. É a partir deste contexto específico de constituição da identidade da população de Goiás que introduzimos em aula de química o conceito de constante de formação de complexos a partir de seis diferentes reações.Inicialmente foi adicionado a três tubos de ensaio (numerados 1, 2 e 3) solução do complexo de [Ni(H2O)6]2+ (foto 1), em seguida foi adicionado a estes os ligantes amônia, etilenodiamina e dimetilglioxima (fotos 2; 3 e 4). Em seguida sob os produtos formados foram adicionados ligantes diferentes dos iniciais (foto 5). A Figura 1 mostra a sequência de fotos após a adição de cada ligante.Foi pedido para que os alunos discutissem a mudança na coloração da solução em constante de formação de complexos (Kf). A figura 2 mostra uma imagem da discussão sobre os três primeiros experimentos de um dos alunos. Quando o aluno escreve que a constante de formação do aquo complexo de níquel é menor do que as constantes de formação dos complexos de etileno diamin- níquel II e do dimetilglioximato de níquel II, tem outro conceito envolvido, qual seja, o efeito quelato. Quando se adiciona etilenodiamina ao tubo 1 observa-se que o produto formado possui as mesmas características do produto contido no tubo 2. Concluí-se Kf [Ni(en)3]2+ > Kf [Ni(NH3)6]2+. Nesse caso diz-se que o [Ni(en)3]2+ é um complexo quelato. Segundo BARROS (1992), complexos quelatos são mais estáveis com relação à dissociação do que aqueles com ligantes monodentados semelhantes, (p.312-313).

Figura 2. Fotos dos experimentos.

Mostra a sequencia de fotos dos produtos formados após a adição dos ligantes amônia, etilenodiamina e dimetilglioxima.

Figura 2. Fotos dos experimentos.

Mostra a sequencia de fotos dos produtos formados após a adição dos ligantes amônia, etilenodiamina e dimetilglioxima.

Conclusões

Nossos resultados mostram que foi possível implementar a lei 10639/03 no ensino de química. Nessa intervenção discutimos a origem, ou as possíveis origens, dos negros africanos que em conjuntos com os portugueses fundaram o atual estado de Goiás, inicialmente em busca de ouro, ou seja, estabelecemos a contextualização. A manutenção da tradição, cultura e religiosidade dos negros brasileiros na atual cidade de Niquelândia GO foi contextualizada com a produção de níquel daquela região que é realizada através de reações de complexação com os ligantes CO2 e NH3 e a partir daí foram discutidos conceitos de constante de formação de complexos e efeito quelato que se encontra em várias ementas de diferentes disciplinas de diferentes modalidades de curso superior em química no Brasil. Necessário dizer que para uma discussão desta além das leituras da literatura em química é preciso que o professor busque apoio em autores especializados em história e cultura afro brasileira, ou seja, é necessário conhecer e se reconhecer pertencente a esta sociedade multirracial e de sérias distorções sócio raciais. Cabe esclarecer que essa IP foi realizada em uma disciplina de curso superior, mas discussões desse tipo podem ser feitas em aulas de química/ciências também na educação básica.

Agradecimentos

Ao CNPQ e a FAPEG pelo apoio financeiro.

Referências

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